sábado, 30 de janeiro de 2016

À boca miúda



Há palavras que repetimos a vida inteira e não nos damos conta de que se tornaram clichês vazios, ou seja, palavras vestidas do próprio sentido. Um dia chega em que, instintivamente, nos pegamos repetindo o jargão sem o conhecimento da origem, tampouco de que se trata, apesar do emprego estar absolutamente adequado ao discurso. Paramos aí para uma pesquisa, não ao professor Google, mas àquela pessoa que sabemos ter mais sabedoria que nós pelos anos vividos para nos dizer o que vem a ser... E numa simples conversa de neto e avó vamos encontrar deliciosas explicações para nossas frases feitas há século. Foi assim recentemente com a expressão à boca miúda para dar nome ao comportamento fofoqueiro recorrente nas rodas de conversa dos compadres ou das comadres em esquinas, calçadas, bares, ou mesmo na missa de domingo. Como uma palavra traz outra, ou outras, em sua origem, a vó tenta responder ao neto curioso o que vem a ser à boca miúda com uma imagem concreta que desse peso e autenticidade ao conceito por demais batido e repetido: “Lembra do fuxico de vó Marica? Pois bem, falar à boca miúda é o mesmo que fuxicar.” A vó foi ao quarto de despejo, abriu a maleta de tábuas amarelas, herança de vó Marica, e mostrou ao neto um pano composto de círculos de vários tecidos lisos e com estampas coloridos chuleados na borda e emendados um no outro. “Não entendi, vó”, disse o menino ainda mais confuso. “É simples, meu bem”, ela disse carinhosamente. “Veja o formato desse fuxico” – mostra-lhe o detalhe de um, verde-limão –, “ele não está franzido como se fosse uma boca encolhida? Então, isso é a representação artística de à boca miúda, ou seja, o corpo do fuxico que saiu da cabeça do fuxiqueiro.” “Ah, vó, agora é que não entendi mesmo...” A mulher, cheia da astúcia das avós maluquinhas, sem dar tempo ao menino de se defender, aproximou o máximo a boca feito bico, aliás, feito fuxico, e cochichou chuviscando cuspe no rosto do neto: “Vou dizer à tia Zefinha quem comeu o bolo de leite...” O menino arregalou os olhos e gritou: “Isso é fuxico, vó”.

Ana Barros         

Natal, 24 de janeiro de 2016.





A dança das agulhas



O vídeo da TV Brasil http://tvbrasil.ebc.com.br/…/uso-da-internet-e-cada-vez-mai… mostra uma das facetas contemporâneas mais analisadas por críticos da mudança de costumes nas relações humanas depois das novas mídias sociais. O destaque é para os idosos que se identificam cada vez mais com o computador e menos com os grupos de amigos formados há anos na comunidade. A reportagem fala desse perfil de idoso como regra. No entanto, principalmente no interior do Nordeste onde a cultura da oralidade e da vizinhança permanece ativa, o contato humano, sem interferência da tela e longe da solidão, permanece ativo e rico. Cooperativas de artesanato, turismo, esportes, lazer, eventos festivos e de qualidade de vida, sem esquecer as limitações de acesso e de políticas públicas ainda em curso, são itens na agenda de muitos velhos no Brasil. É um movimento dinâmico e com possibilidades de mudança à medida que novos idosos vão ocupar um espaço cada vez mais atual, não só em relação à tecnologia, mas em função do nível cultural e político da população envelhecida. Hoje há que se observar que as gerações de idosos expostas em espaços públicos remetem-se a épocas do patriarcado, da repressão sexual, machista e, mais do que em todos os tempos, de inferiorização da mulher e do idoso. Muitos destes ainda buscam a rua como adolescentes que foram castrados de dar vazão aos impulsos próprios da idade. A dança, os jogos, o namoro e os passeios entre eles, vividos com a intensidade juvenil desbloqueada pela moral que se rasgou de tão imprestável no corpo que joga fora os princípios de culpa e pecado, jamais serão substituídos por informações e imagens frias de um computador. Receio, sim, que a minha geração, daqui a pouco velha, seja ela propícia a essa clausura virtual, pois, infinitamente mais livre, racional, culta e independente que avós e mães, se não tiver construído o tempo e o espaço para o contato com pessoas, longe do mundo da técnica e dos negócios, sobrará a ela certamente a cadeira de frente ao monitor, no qual vê tudo sem nada tocar. Talvez tenhamos que aprender com nossas mães, e demais idosos, a arte de fazer crochê com os moldes passados de mão em mão, a arte da conversa na rua, a arte da dança e do riso mais do que a arte do isolamento, que pode ser boa, e é, para criar, aprimorar conhecimentos, desenvolver habilidades, sarar mau humor, jamais para ser um com os outros.

Ana Barros
Natal, 12 de janeiro de 2016.




O guarda-roupa



Nada mais estimulante à curiosidade ociosa
que caminhar em fim de tarde em rua de burguês. Sempre há
no percurso alguma coisa que chama a atenção pelo valor e
importância dada até então à vida de alguém que,
nascida outra necessidade, abandona o objeto vestido de alma
aonde alguém passa com os olhos à cata de algo – com alma.
Foi assim quando eu caminhava em frente à casa em reforma e vi
o guarda-roupa atirado à lama. Parei indignada
com a dona do móvel – dona porque havia abundância
de evidência feminina. Ela, além de não ter os bons modos
da moda, zerava no gesto insólito as impressões tão somente
as dela. Ao me aproximar pude ver as marcas de dedo e de batom
no espelho cego. Toquei as manchas vermelhas em forma de beijo
e amei digitar na rua: “Alô... Ribamar?
venha com a leveza e a força nua”. Não mais que
o tempo de agachar e pegar o alfinete preso à fotografia
extraviada do sigilo rasgado passou para que Ribamar erguesse as
tábuas desconjuntadas do ancião quebrado.
Já em casa enxuguei os pingos caídos dos frisos na
fuligem negra da arte gótica. Olhei feliz o resultado e
encostei o guarda-roupa ainda mais velho na parede cinza
do quarto de Aline. Ali, entre o batom roxo,
roupa esgarçada e sapato preto da menina, o marco zero
dava corda e começava de novo: tic-tac tic-tac tic...

Ana Barros
Natal, 19 de janeiro de 2016.