terça-feira, 24 de março de 2015

UM ELOGIO À DESORDEM



   
Não sabia o que fascinava em ter minha casa entre duas famílias com crianças. Do lado direito, Ana, do esquerdo, Vicente, ambos de cinco anos. Os avós, os pais e tios de Ana ralham com a menina o dia todo. Os avós, os pais e tios de Vicente amam o menino o dia todo. Eu, entre eles, me delicio. É tanto que viajei um dia desses para o interior e lá tive a impressão de ouvir Vicente dirigir seu carrinho e conversar com seus camaradas de imaginação. Ouvi também a avó de Ana gritar com ela e a traquina responder com sua inocente espontaneidade. Sorri satisfeita e me lembrei da desordem e dos sons que chegavam até mim vindos das duas casas. Barulho de coisa viva-quente-inquieto-buliçosa.
           
Seria só a impulsividade das duas crianças e o nervosismo dos adultos ao seu redor que tanto me atraiam? A viagem fez compreender que não. Havia outro lado, sombrio, que ainda não conhecia, mas que espreitava o momento certo de se revelar: a solidão, o silêncio, a paz, a ordem que chega com o desaparecimento da inocência, inocência que eu tinha o privilégio de mais uma vez experimentar, primeiro por ser avó de Heitor, também com cinco anos. Segundo, por residir próximo à desobediência dos dois pequenos. Além disso, a viagem trouxera à luz outra face da vida, aquela que se esvai na reclusão da casa daqueles que perdem a leveza da cumplicidade juvenil, ou por doença, velhice, ou por abandono mesmo ao enfado da vida.

Daquela vez visitei dois amigos já bastante idosos, Sther, viúva, sozinha, 72 anos, e Olegário, 80 anos, casado e com filhos já casados. Fui primeiro à casa do velho. Apesar de morar com a família, encontrei-o só e desesperado. Tinha mal de Parkinson. A ordem, o silêncio e o vazio absorviam aquele homem forte e ainda com os vestígios de uma virilidade consumada. Era agora uma pessoa sozinha num espaço que conheci noutro tempo cheio de vozes, discussões, risos estridentes, som de viola (ele era músico), de pandeiro, batida de talheres nos pratos pelos jovens da casa numa performance entre camaradas: pai e filhos. Ao avistar Olegário lembrei-me de Otávio Lamartine e de Hemingway, que se mataram numa idade já bem avançada: teriam eles chegado ao ponto final do duelo que mantiveram com a morte durante toda a vida? Ou os meus amigos desconheciam qualquer conflito com a morte ou, ao contrário dos dois escritores, duelariam até o último instante? Jamais consegui saber.

Sther também estava só quando a visitei. Os filhos ausentes. Ainda não havia tomado banho por não conseguir desabotoar o vestido. Olhei em torno e observei que as almofadas estavam geometricamente em ordem sobre o sofá bem conservado, não havia sequer um gato para desarrumá-las. O piso brilhava, os lençóis das camas não desenhavam formas, sinal de que ninguém ali se deitava há bastante tempo. A casa da minha amiga estava em ordem. Foi inevitável a lembrança de Ana e Vicente, e agora de Heitor, deixando um rastro de desordem e alegria por onde passavam.

Despedi-me da minha amiga com a incômoda sensação de que consumimos toda a nossa juventude, toda a nossa energia criativa desejando que os filhos cresçam para que, enfim, possamos ficar sozinhos e em paz. E um dia a solidão e a paz batem a nossa porta, entram não como convidados alegres feito crianças, mas como fantasmas de nós mesmos a nos cobrir de passado e remorso. E aí, de tanto querer e pedir silêncio, de tanto reprimir o riso e alegria de viver, de tanto condenar a volúpia existencial, de tanto ir à igreja rezar pela paz e a ordem, eis que o silêncio mais cruel entrou em nossa casa, que agora está fechada, em paz, em sossego, em harmonia com o tédio mortal.

Ana Barros
Natal, 20 de maio de 2012.                  

domingo, 15 de março de 2015

NOIR



Tomei o gole de café com as mãos trêmulas e acompanhei a conversa fingindo nada saber para que A., com as imagens a pular na frente do óbvio, falasse o que eu já sabia, porém, para encobrir nossas baixezas, recorre sempre à explicação necessária, não a mim nem a ela, mas à farsa que obriga certeza. Naquele dia à pergunta “G., o que é um artista?”, A. aproximou o rosto e fixou nos meus olhos maus de bêbado. Pensei e não disse: “nós dois. Você, uma assassina. Eu, um suicida”. Sem me desviar do olhar que ansiava resposta atravessei a sala e desapareci. É certo que retorno alguns minutos depois ainda mais bêbado e com a resposta babando ódio: A. joga a interrogação no vento como quem lança dardos mortais. Mais que qualquer um ela sabe o que é um artista. E é por saber que tem a vidência de um deus e a soberba de um tirano. Enquanto eu, depravado e longe, dou à sombra vício e maldade, evasão e nulidade.

Ana Barros
Natal, 02 de março de 2015.