sábado, 19 de dezembro de 2015

É dia de feira




O papel de embrulho cortado em partes iguais e estirado em cima do balcão aguarda o freguês com uma pedra gasta em cima. Barras de sabão coladinhas uma à outra se transformam em pequenos tijolos de meia a um quarto de barra. Chegaram também o saco de bolacha e o de açúcar. O chão se faz mel da poeira doce misturada ao suor dos pés de quem, pra lá e pra cá, pesa, embrulha e arruma os pacotes de um quilo, meio quilo, uma libra, meia libra... O freguês diz quanto quer. Bodega abastecida é arrumação das necessidades de quem chega. E o dono sabe a precisão de cada um. Bodega abastecida é estética do que se planta, do que se come, embeleza, diverte e cura. Basta observar a caixa pequena decorada com propaganda para logo adivinhar que ali vai encontrar: cibazol, melhoral, sonrizal e band-aid. Colada à parede e com tranca, um expositor de vidro protege de mãos inábeis os frascos de Seiva de Alfazema e os sabonetes Gessy. Toda bodega traz em dia de feira as prateleiras abastecidas de mantimentos e cheiros. Estes, de todos os tipos, não importa se molhado, seco, doce, azedo, ou ardido de peixe. Sentindo o odor forte do fumo de rolo enrodilhado nas folhas de tabaco, o homem deixa de lado a bolsa de palha e dá garra da peixeira que traz embainhada às costas. Corta uma pele do tamanho de uma casca de alho e masca como se fosse chiclete. Pouco depois um pequeno riacho de saliva escura escorre no pé do balcão...  Já o freguês da cidade prefere o “cigarro da praça”, não o de palha: Continental, Plaza, Minister, Hollywood, entre outras marcas que, por falta de dinheiro ou por estimular a ida até a bodega, o freguês opta por comprar a carteira de cigarros fracionada.  E assim, de cima abaixo do balcão, divididos ou não, encontramos os produtos sem os quais passamos privações, seja pelo vício, seja pela fome. O charque e o porco salgado criam salmoura e varejeiras na bacia de flandres sobre a banca posta na calçada.  Pirulitos e rasga-boca enchem e colorem os vidros longe dos meninos ansiosos que ficaram em casa. Sacos de feijão, de arroz, de farinha e milho com a boca aberta e a medida pronta para levar à balança os grãos escolhidos, são mexidos, cheirados, mordidos, aprovados ou não diante da descoberta de algum caruncho ou outra praga que denuncie a idade avançada do grão. A rapadura, arrumada nas palhas da cana trançadas num garajau, expõe-se sobre o tablado no qual o açúcar empacotado já se encontra arrumado. Alimentos pesados e organizados. Chegou a hora de receber a cachaça, que vem da Paraíba na barrica de taboca presa ao bagageiro da bicicleta. Várias garrafas de vidro enfileiradas na calçada recebem a aguardente da mangueira sob olhares do bebum ávido por uma “lapada”. Na passagem de um vasilhame a outro ele apanha as gotinhas num caneco e, ao final da transposição, está completamente embriagado. Garrafas cheias, fechadas e dispostas na prateleira bem em frente, serão esvaziadas em “meiota” e copos engana bêbado por homens que chegam sóbrios e voltam para casa alegres e cheios de sacos pendurados na cangalha do burro. Na entrada da bodega, ao lado da porta, tem o tambor de óleo enegrecido pela fuligem da rua colada ao querosene das lamparinas. A torneira despeja a medida na lata tantas vezes o freguês peça. Mas já é tardinha e os donos da bodega arfam de cansaço. Deixam a desordem pra lá, que espere o outro dia. Sentam-se próximo à gaveta que há sob o balcão e contam o apurado. A missa começa logo mais, já foram dadas duas badaladas no sino, falta uma, tempo suficiente de vestir a roupa de domingo, colocar as moedas menores no bolso da calça e agradecer a Deus no
ofertório.


Ana Barros

29 de outubro de 2015.

Saco de pão



sábado, 12 de dezembro de 2015

O segredo



“Tenho um segredo”, eu disse dentro do copo antes de tomar a dose
Que encerraria a breve história do que a ninguém edito
Apago o cigarro entre o polegar e o indicador molhado
Antes, porém, a maré arrasta as bitucas que eu, passivo e alheio, joguei na areia:
Três maços boiam na superfície que devolve o que não afunda
“Mas eu tenho um segredo”, repito sem testemunha
Guardo o toco de cigarro atrás da orelha e espero... Não tenho pressa
A onda avança e afoga os meus lábios: bêbado trago a ressaca
E juntos caímos no abismo que nada

Ana Barros
Natal, 09 de novembro de 2015.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Casquinho

Dia desses vi no programa de televisão a mulher elevada à estrela por ter em casa um bicho de estimação fora do comum: uma cabrita. Nada demais a não ser o fato da mulher, puxada pelos pinotes da pequena cabra, repetir o tempo todo, "filha, venha pra mamãe" e apresentar o quarto da “menina” ao telespectador ávido de frivolidade como se fosse o assunto mais interessante do mundo. Do lado de cá imaginei se o espaço, suficiente para acomodar um casal, equipado de cama de gente, armários, banheira, muitos perfumes, cosméticos, luzes coloridas piscando no teto e música para relaxar a “filhota”, ficava atrás do quarto da filha de verdade, “irmã” da cabra.

Estimar bichos como cabrito, porco, cobra, galinha, iguana, rato, lagartixa, sagui, ou até mesmo corvo, é bizarro, porém, compreensivo entre aqueles com inclinações afetivas mais ao céu da irracionalidade do que ao inferno da razão. No entanto, que dizer de alguém que tem um sapo cururu como íntimo, ao qual dedica longos papos, amor e afeição? Pois bem, na crônica "O sapo cururu", de José de Oliveira Ramos, http://www.luizberto.com/enxugandogelo-jose-d…/o-sapo-cururu, conhecemos Casquinho, um cururu amado não por ser belo, dócil, ou mesmo impulsivo como é a cabrinha bebê, mas por defender o pote da água de beber de grilos, moscas, baratas e outros insetos ao gosto dos sapos.

Temos que ler o texto até o fim para sentir com João, o "pai" de Casquinho, a intensidade de amor e tragédia capaz de levar ao desespero aquele que sente para fora do que é humano. Confesso que passei dias impressionada com a pequena história, até escrever esta crônica, não pela insensatez do dono do cururu que, bêbado, o espanca até à morte por ter deixado um grilo mergulhar na água por ele vigiada dia e noite, mas pela condição de mártir a que João, no êxtase do remorso, eleva o infeliz Casquinho. Sentimento este de verdade animal, ou seja, João torna-se sapo para chorar a morte de um sapo. Infelizmente, João ser humano, embriagado e fora de si, age igualmente a todos que, racionalmente, odeiam cururu e o expulsa porta afora com vassouradas e punhado de sal jogado no couro frio e grosso daquele que é tolerado apenas como "escravo" a vigiar potes e charcos no canto do muro, ou ainda como elemento negativo de alto valor místico em ritual de macumba, no qual se costura a boca do animal com a foto de quem se quer, se não morto, caído em desgraça por cobiçar o amor de quem bota fé na boca do sapo.

E por falar em maus-tratos do bicho que coaxa e enobrece a noite com o canto do inverno à beira de poças d'água e lagoas, será que existe neste mundo cada vez mais barroco defensores de sapo cururu espancado ou costurada a boca em ritual de magia?


Ana Barros
Natal, 25 de outubro de 2015.

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

A VOZ DE OURO


Talvez a geração nascida nos anos sessenta seja a última a ter o prazer de ouvir bons programas de Rádio AM. Em toda a década a música brasileira, apesar de muitas versões estrangeiras, ainda foi a preferida pelas estações, que se pautavam pelo samba canção, marchinhas e composições românticas interpretadas por artistas cuja voz se tornaria em pouco tempo sucesso nacional. A televisão era objeto raro vindo aparecer em minha cidade apenas em 1970, período da Copa do Mundo, adquirido por Dedé Pereira, dono da maior mercearia do lugar, homem elegante e por dentro das novidades mundanas. E foi assim que, em uma de suas idas a Natal, comprou o primeiro aparelho de TV, preto e branco, para ver os jogos do mundial com os clientes. Até aí o hábito era ouvir rádio, das notícias às ofertas musicais. Estas, dedicadas ao ouvinte que fazia seu pedido através de cartas, principalmente se estava apaixonado ou de partida para São Paulo. O termo “página musical” era comum ao locutor do momento, fosse no parque de diversão ou no Rádio. Com voz impostada, ele lia a crônica de amor para aquela que ficara com o “coração partido”.  De minha parte, desejava ardentemente ter um amor que me fizesse chorar ao ouvir suas mensagens dramatizadas pelo locutor. Porém, jamais tive talento para viver a experiência de prazer e dor, à época, lugar comum das moças românticas. Muitas das minhas amigas de infância casaram com rapazes que partiram no pau-de-arara. Depois de alguns anos trocando cartas, o amado, que passa privações de toda sorte material e existencial no Sul Maravilha, junta dinheiro e retorna para levar com ele a moça que o espera, feliz em bordar o enxoval de virgem.

Sem maiores traumas pelo insucesso com os arranjos matrimoniais, aliás, meus pais não fizeram questão de arranjar marido para mim, deixei-me levar pela força do que era maior do que o desejo real de ir embora com um noivo num pau-de-arara: a imaginação ligada no tempo do Rádio. De manhã à noite deixo a fantasia livre para sonhar com o dono da linda voz. Brejuí de Currais Novos e Poti de Natal, Tabajara de João Pessoa e Clube de Pernambuco. Esta última quase me leva à loucura. Tony César é o locutor mais querido. De voz macia e sedutora logo caio de paixão por ele, separado de mim por fios e ondas curtas. Quero uma fotografia. Ele manda com autógrafo e um sinal no queixo. Passo anos com a imagem colada na parede até o dia em que nos mudamos de casa e eu, sem mais emoção, deixei-a para trás.  

Mas não é só o galã invisível de voz aveludada que me deixa abobalhada ao pé do rádio nos momentos em que não estou na escola. Até nos afazeres de casa, desde sempre gosto de vassoura e espanador embalados ao som, o movimento em limpar o chão e os móveis com esses objetos me leva ao devaneio da criação, deixo-me hipnotizar por gente da velha guarda como Silvinho, Elizeth Cardoso, Nelson Gonçalves, Altemar Dutra, Agnaldo Timóteo, Ângela Maria e tantos outros que desapareceram com a Rádio AM, mas não de minhas lembranças. Um destes, que escuto e vejo minha mãe dizer que é um nome importante da música romântica, é Orlando Silva, “o cantor das multidões”, “a voz de ouro”, referências com as quais é popularizado e disputado por compositores para dar vida e voz às suas letras. Das mais conhecidas ficou Carinhoso, que tem Orlando Silva como primeiro intérprete. Mas o meu biscoito mergulhado na xícara de chá que traz o cheiro de passado ao som de vinil tocando na difusora de Bacalhau, dono do bar no qual eu fui a melhor dançarina na matinê carnavalesca, é Jardineira, lindamente interpretada por Orlando Silva e que, quando escuto, tenho o tempo retornado em flashes do momento que eu não quis cristalizar ou que foi impossível parar. Foi assim com o rádio, ele, o aparelho, companheiro de horas mágicas, saiu de minha vida de forma cruel, mais cruel que a frustração de não ter um noivo a juntar dinheiro em Sampa para me levar com ele. O rádio abrigava os vários amores imaginados. Eu sem ele, o rádio, fiquei só: entre mim e mim.

Meu pai, que não gostava de nada que o tirasse do silêncio, cujo único diálogo eram as discussões provocadas por comentários tolos na hora do almoço, isso quando não estava mergulhado em pensamentos sombrios, jamais presenciei ele se interessar por música, circo, teatro, dança, jogos, fofoca ou bebida, chegou do roçado e, vendo-me levar vida maravilhosa de menina que escuta Orlando Silva ao pé do rádio, desligou o aparelho, colocou-o debaixo do braço e saiu esbravejando contra a minha “falta de controle”. Algumas horas depois retornou com o dinheiro da venda do ABC – A Voz de Ouro, aquele do canarinho. Nunca mais tivemos outro. Passo um longo tempo de luto, pois perdera a companhia amorosa do aparelho e seus personagens, mais próximos de mim do que os que iam e vinham à minha vista.

Sento para ouvir música outra vez só em 1981 quando, já funcionária, compro um rádio toca-fitas. Um Motoradio preto, portátil e com alça. Para onde vou levo ele. Aí já tenho um namorado e é na companhia dele que passo a ouvir não mais os românticos da velha guarda, tampouco da jovem guarda, mas os engajados Zé Ramalho, Fagner, Betânia, Gal, Chico, Caetano, Geraldo Vandré, Rita, Taiguara, Elis Regina, João do Vale, João Bosco, Raul Seixas, etc., etc.
       
Ana Barros                                                   
Natal, 03 de outubro de 2015.

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

MODA: QUEM COMPRA E QUEM REPRODUZ

Podemos contar a história de uma época nos detendo em fotografias que foram contemporâneas e que se tornam clássicas pelo conjunto de signos característicos da sociedade em evidência. É comum achar graça da moda passada, ridicularizar excessos ou ausência de panos, chapéus, bengalas, bigodes, costeletas, saiotes, espartilhos quando somos envolvidos pela atmosfera atual, seja esta tão ou mais artificial quanto à anterior. Achamos sempre que o que usamos no momento é o melhor, o mais civilizado e isento de ridículo, pois que é presente altamente industrial, tecnológico. Esquecemos, porém, que toda sociedade tem o seu presente e a sua tecnologia. Dos fios mais rústicos aos tecidos mais elaborados, do sabão mais artesanal ao sabonete delicado, homens e mulheres estiveram e estão sempre envolvidos na criação de formas, cheiros e cores para se adornar e chamar atenção para si. Engana-se quem acha que a moda do presente, por ser pensada por especialistas qualificados em universidades de moda e estilo, não é uma reprodução de ontem e que amanhã vai ser observada como descartável, risível. Olhando a foto que ilustra o texto não podemos deixar de admirar a elegância e postura aristocrata do Senhor que se olha no espelho do porta-chapéus, móvel tão fora de moda quanto os acessórios nele postos, chapéu e guarda-chuva. No entanto, a imagem em si é tão rica de símbolos da classe a qual pertence o Senhor, quanto qualquer fotografia tirada hoje de um homem que fizer parte da mesma classe social que a do fotografado. Haverá para ele sempre o espelho da moda, os acessórios, o tecido, o móvel, o perfume, a gravata e o terno adequados ao seu poder econômico. A moda, transitória e dinâmica como todos os fenômenos sociais, vai ser substituída por outra nem sempre mais interessante que a anterior, mas o homem será o mesmo em sua necessidade de afirmar o que é, o que tem e o que cria. A moda, ultrapassada, ridícula ou não, é a história de vida deste homem. Os de pouco quinhão que querem a todo custo acompanhar as tendências da estética do momento, contentar-se-ão com a imitação banalizada que promete a todos igualdade no mundo das aparências. Em relação aos primeiros, os que definem a moda, a admiração, a inveja, a cópia por aqueles que são obrigados pelo trabalho renovar ciclicamente os desejos de quem dita a “última moda”. Porém, basta olhar atentamente as fotografias que ilustram livros e revistas de História para percebermos, pela postura orgulhosa, vestimenta e acessórios dos escolhidos por autor e editora, quem compra e quem reproduz moda.
Ana Barros
Natal, 27 de julho de 2015.
Foto do perfil (Facebook) de Lenira Xavier