domingo, 17 de agosto de 2014

DA MÁQUINA AO TANQUE



Não faz tempo por aqui se exaltava o exemplo de consumo americano como modelo de riqueza enquanto nós, brasileiros, permanecíamos na miséria material e cultural, dependentes ainda de arranjos e ferramentas rudimentares como fogão à lenha, batedor de roupas, potes de barro, ferro de brasa, panelas de barro, colher de pau, moinho, pilões, entre tantos outros equipamentos de cujo manuseio nossas ancestrais padeciam fadiga e exaustão a deixá-las num futuro bem curto doentes e inválidas. A geração dos 70 anos é a última entre nós a guardar lembranças de uma realidade que se pautou pela durabilidade do casamento e do conjunto de coisas necessárias à sustentação e preservação do patrimônio da família. Vem daí o embrião de projetos que visaram eternizar o homem séculos afora através de utilitários e estruturas forjadas em materiais sólidos, pois representavam a convicção de empreendedores com uma perspectiva para além, muito além, de seu tempo. Apesar de conhecer o fim, sem grandes dramas, e este vinha com mais pressa do que em tempos atuais de medicina propícia a prolongar ao máximo a vida, planejavam o tempo para si e outras gerações. Basta observar a arquitetura dos séculos XVIII e XIX com suas fachadas imponentes desafiando o tempo e a engenharia contemporânea para imaginar o mobiliário, hoje encontrado com poucas famílias, colecionadores e museus. Pouco se praticava o descarte de objetos feitos para durar décadas. Era comum, com a morte dos donos da casa, os filhos fazerem a partilha e, de novo, os objetos readquiriam status em outro, ou outros, ambiente. Assim se procedia com carros, móveis, objetos de arte, joias, roupas, calçados e tantos outros acessórios que passavam de pais para filhos como herança de bens cujo valor afetivo e estético, na maioria das vezes, era o que contava. Mas a inversão de valor se aprofundou cada vez mais através das décadas de industrialização em larga escala para chegar à época de consumo efêmero e consequente ausência de projetos duráveis, já que estes não correspondem às necessidades de expansão capitalista volátil. Esta exige a ditadura da ilusão de permanente presente, de eterno novo em que funciona e produz não apenas bens perecíveis, mas também uma fantástica demanda de lixo, o qual o novo mercado de serviços, filho do consumo desenfreado, não consegue recuperar. Com o acesso às linhas de crédito e parcelas em longo prazo, ficou mais cômodo se desfazer de um bem quebrado e adquirir um novo do que pagar caro pelo serviço do reparo, nunca disponível no presente do consumidor apressado e seduzido a trocar o que comprou ontem pelo lançamento de hoje. Vem daí o maior dos clichês de inveja dos ricos americanos, que há quase um século engordam os lixões com seus delírios. O complexo de inferioridade de alguns brasileiros impede a percepção crítica da realidade de acordo com vivências mais simples e próximas da natureza. Um exemplo recente, apesar da sofisticação dos utensílios e dos mais famosos restaurantes do mundo, é Paris ser mais uma vez foco de reportagens chamando a atenção para a infestação de ratos em ruas e parques. No entanto, a decadente cultura francesa não foi percebida pelo casal de turistas brasileiro que fez ironia à realidade daqui, que não dispõe de castelos abandonados, aos quais acorrem artistas e moradores de rua, e postou em sua página na rede social fotos em que aparecem deslumbrados com um piano velho abandonado na rua como se houvessem descoberto um diamante no meio do lixão de um dos maiores templos de consumo do planeta. Aliás, muitos latinos residentes na Europa e Estados Unidos conseguem equipar suas casas com móveis encontrados em lixo, deixados aí para serem levados. Por aqui, em meio ao deslumbramento da falsa ascensão de uma “classe média”, já se ver móveis e eletrodomésticos abandonados em vias e lixões. Entretanto, e isso é afirmação, à margem da cultura de massa surpreende outra infinitamente menor em relação ao número de pessoas atingido, porém com a visão revolucionária que realmente interessa. No Brasil começa surgir, aqui e acolá, outro comportamento, nem um pouco invejoso de países carcomidos pelo uso dos recursos naturais e posterior sucateamento das possibilidades existenciais e sim mais atento ao canto da sereia da indústria do presente. Contrário ao casal deslumbrado fuçando o lixo cheio de ratos de Paris presenciei na academia de ginástica do bairro a conversa de duas mulheres que dá o exemplo não visto nas novelas da TV nem no Facebook, de que nem só de facilidades é feito o cotidiano das pessoas. Entre uma pedalada e outra, enquanto a primeira defende a geração dos descartáveis como saída para a sua vida sem tempo, a segunda, com mais tempo disponível para compartilhar com a família, mostrou-se reticente com o triunfalismo defendido pela vizinha. Encostei mais nas duas e ouvi a segunda dizer em tom menos triunfal: “Jamais tive necessidade de geringonças tecnológicas. Resisto o quanto posso comprar novos aparelhos”, parou um segundo para respirar e acrescentou, “há dias minha máquina de lavar quebrou e quase senti um alívio por ter que jogá-la fora. Mas, pensei, isso é correto? Vi que não. Eu, como milhões de outras pessoas, estava jogando fora o equipamento quebrado,” respirou de novo e continuou: “ela durou seis anos, a próxima deve durar mais ou menos este tempo também e, de novo, jogo a máquina fora. Tantas máquinas eu compre antes de morrer, tantas máquinas vou jogar no lixo.” No auge do esvaziamento dos lares e da terceirização dos serviços domésticos quando não realizados pela parafernália tecnológica, ouvi a surpreendente decisão da segunda mulher: “lá em casa, voltamos ao tanque com um par de luvas de borracha e, quando necessário, recorremos aos serviços de lavanderia”. Esta parte da conversa me fez lembrar três atitudes cuja prática leva, primeira, à divisão das tarefas domésticas entre os moradores da casa, abolindo de vez a concentração dos trabalhos enfadonhos e não produtivos sobre as mulheres da família, bem como abrindo mão dos empregados domésticos, que passaram a se qualificar em outras áreas ou a expandir seus direitos e, consequentemente, ficaram raros e caros. Em segundo lugar, voltar à prática solidária, quase esquecida em tempos nos quais todos parecemos tomados pelas facilidades em ter tudo o que a indústria oferece, da máquina de lavar roupas ao avião. Com o surgimento da máquina de lavar desapareceram as lavadeiras com a cruel labuta de água, lata, trouxa e sabão. Mas hoje, e é paradoxal, graças à tecnologia e à melhoria dos salários, temos cada vez mais o serviço oferecido àqueles que podem pagar e abdicam de ter um eletrodoméstico, ou até mesmo um carro, e escolhem retornar a uma prática antiga e que os especialistas no assunto chamam de “economia colaborativa”, que nada mais é que renunciar ao consumo irracional para usar os equipamentos de outro que os compartilha com um grupo de amigos na prática da troca ou cobrando um valor adequado à proposta, qual seja a de socializar os bens que passam a maior parte do tempo ociosos, como é a maioria das máquinas e ferramentas que adquirimos ao longo da vida. A terceira alternativa talvez seja a mais gratificante por ser a que une ação e pensamento nas tarefas mais simples do cotidiano de homens e mulheres sensíveis. Para aquele que se entrega às atividades que mexem com o físico, há a alegria proporcionada pela execução dos trabalhos mais insignificantes como extensão do corpo e a arte que nasce em momentos de movimento. Poderíamos citar vários criadores que viveram entre a fadiga e a fadiga não como um fracassado meio de vida, mas como meio de atingir o mais alto degrau da experiência humana. E isso é arte. Cora Coralina na produção de seus doces e poemas do simples, Maria do Santíssimo na pintura de seus galos em meio à labuta no campo e na cozinha, Bispo do Rosário em suas performances solitárias num hospício enquanto não parava de inventar ferramentas, Gorki nos trabalhos árduos entre camponeses e mineiros, Hemingway em suas pescarias e Rimbaud com a sua completa entrega às caminhadas pela Europa e aos trabalhos mais ordinários como a querer libertar (ou exaltar?) algo que só o frenesi trazido pela ação seria capaz de realizar.

Ana Barros
Natal, 03 de agosto de 2014.

TRISTEZA



Longe de tudo que é brincadeira deito a contemplar os espaços entre uma telha e outra telha onde se desenham as imagens que vão direto à fraqueza da menina que nada mais que poesia faz distante da algazarra que chega pela porta aberta e sem rua

Ana Barros
Natal, 17 de agosto de 2014.


terça-feira, 5 de agosto de 2014

CONFESSAR PARA NÃO QUEIMAR NO INFERNO



Houve um tempo, não muito longe, que era norma da Igreja católica
homens e mulheres confessar seus pecados ao vigário individualmente
e de joelhos, num confessionário, este, móvel projetado para esconder o padre
em seu interior, deixando apenas uma janela vazada para instigar e ouvir, sem
ver, o pecador, ou pecadora, chafurdar suas misérias. A partir da década
de 1970, a Igreja tomou ares mais modernos dando início algumas
reformas. E uma delas foi abolir a confissão individual e, consequentemente, 
aposentar o confessionário, por sinal muito charmoso não fossem as manchas imundas dos pecados induzidos por mentes doentes aos pobres fiéis transidos de culpa. A atitude da Igreja católica desagradou a muitos religiosos, principalmente àqueles ortodoxos do Nordeste que acreditavam só nas exortações e conselhos do padre Cícero do Juazeiro, Ceará, e do frei Damião de Bozzano, italiano cuja longa vida teve como pátria o Recife. Enquanto os dois viveram, as estradas de barro foram trilhas de milhares de viagens de romeiros, a maioria camponeses, em paus-de-arara, montados em burros, em que o percurso durava semanas, com muitos preferindo ir a pé para a penitência ser ainda maior. Frei Damião não tinha um território fixo como Cícero tinha o Juazeiro. Semelhante a qualquer líder messiânico que arrebanha multidões sofridas de terras inóspitas e das garras de coronéis e políticos cruéis que fogem uma hora da seca, outra de enchentes, o frade
capuchinho, como era carinhosamente chamado por seus seguidores, pregava
a sua doutrina, a qual se resumia a lançar bordões de culpa e castigo sobre aqueles que ousavam viver conforme seus impulsos vitais, nas históricas “santas missões” por onde andava. E era nas “santas missões”, de posse de um crucifixo, um cordão de São Francisco e muita água benta para enxotar o demônio, que homens e mulheres tementes a Deus e que só acreditavam na confissão de seus pecados ao “santo frei” acorriam em massa aonde o furibundo Damião fosse. A fúria contra Lúcifer era tanta na pregação do capuchinho que muitos devotos tremiam de medo só em ouvir as histórias sobre os sermões que o frei pregava às multidões. São folclóricas as exortações às prostitutas, aos amancebados, às mulheres que evitavam filhos e às “comadres” que as incentivavam tomar a pílula contraceptiva. Toda essa malta estava, nas palavras do frei de Bozzano, condenada a arder no fogo eterno do inferno. O medo e o terror da materialização das palavras do religioso no imaginário de pessoas que mantinham com o divino uma relação submissa e cativa faziam com que perdessem o orgulho próprio e se vergassem aos pés do baixinho corcunda para confessar os pecados mais “cabeludos”, porque os mais bestas, como não rezar o terço todos os dias, negar uma esmola, dizer uma mentirinha aqui outra ali, cobiçar a mulher do próximo etc., etc., como sendo de pouca monta, desprezavam na confissão coletiva da missa de domingo, isso após deixar uma oferenda generosa ao santo padroeiro para que este limpasse a sua barra, do pecador, junto ao Senhor no dia do Juízo Final.

Ana Barros

Natal, 04 de agosto de 2014.