sábado, 10 de maio de 2014

A MÃE



Ir a pé ao supermercado em dia de domingo cortando caminho pelas ruas e becos do conjunto popular é um convite às recordações do tempo em que o prazer da mãe era reunir a família em torno da mesa no dia cristão reservado ao descanso. Aprecio o cheiro das flores e arbustos que encontro nos pobres jardins onde floram as sempre-vivas e os cravos silvestres. Mas o espanto fica por conta do cheiro que vem das cozinhas, cujas donas já foram à feira, muito cedo ainda, e agora, desdenhando o olhar pidão e cacete do gato, mexem a carne de boi ou de frango sob a alquimia dos temperos que os filhos, já adultos, casados e com filhos, não deixam de saborear, pois filhos são impregnados dos cheiros da mãe, tanto da pele quanto dos alimentos que, desde o nascimento, põe na boca dos rebentos.

Pode alguém pensar que me refiro a uma mãe do século passado visto que, com a independência da mulher e a socialização dos restaurantes, nenhuma mãe hoje em dia cozinha para marmanjo que se lembra dela, a mãe, só em dia de domingo no intuito de “filar” um rango. Sou mãe, mas no domingo cozinho só para mim. Isso sem causar traumas a ninguém. Meu filho pediu alforria da mãe e do sabor de sua comida. Algum drama? sim, pois ninguém se desfaz da cultura do dia para a noite. Porém, o melhor veio logo após o esvaziamento da pia e do fogão sem chamas no dia santo.

Entendo que nem todas as mulheres trilhem os caminhos que as levariam se desfazer do que sabem melhor: cuidar, proteger e se fazer lembrada por aqueles que mais ama utilizando-se da magia da cozinha, símbolo evidente do laço eterno, em muitos casos, só desatando com a morte da mãe. Subo na calçada para sentir melhor o aroma de carnes e legumes que toma conta da rua. Olho tudo ao redor e o cenário é igual em todas aquelas casas com jardim, quintal e a varanda onde descansam as cadeiras de balanço, as quais após o almoço e a revoada dos filhos, noras e netos empanturrados da sobremesa que exigiram, sorvete de flocos, serão ocupadas pelos donos da casa sonolentos, sozinhos e entediados.

A crônica de domingo é a repetição ofegante desde que essa mulher se casou e os filhos nasceram, até que chega a velhice e ninguém percebe o cansaço da mãe e o sem sabor da comida de vez em quando queimada pelo esquecimento que aporta na idade. E sem qualquer aviso chega o dia que a todos visita e derruba a mãe sobre uma cama de viúva. As panelas são desprezadas num canto da cozinha e alguém é chamado para cuidar da velha doente. As visitas escasseiam-se. Os filhos, noras e netos estão muito ocupados e não têm tempo para cuidar de doentes tampouco para visitas aos domingos, dia de levar João no curso de férias e Júlia ao shopping com as amigas. “Aliás”, lembra a filha mais velha com a razão exata dos justos, “não fizemos a vaquinha para pagar a auxiliar?” Mas... onde os filhos, noras e netos passaram a almoçar no domingo?

Pode ser que o círculo não tenha se fechado com a doença e morte da mãe. Pode ser que comece tudo de novo na casa de um ou de todos os filhos, agora pais de jovens com namoradas, logo logo casados. Mas também pode ser que, com a morte, tanto simbólica quanto física da mãe, uma nova história comece a despontar. Aqui lembro o poder de afirmação da consciência individual no romance “A Mãe”, de Gorki, cujo desenrolar leva uma dona de casa oprimida pelo marido, operário alcoólatra e violento, este, reflexo de uma sociedade brutalizada, a se libertar como revolucionária. Mãe de filho único, analfabeta, mas com grande poder de percepção de mundo e dos homens, aliás, muitos dos personagens de Gorki são analfabetos e marginais, condição que não os impede de refletir e se transformar.  Na perspectiva humanista de Gorki, a mãe se liberta lentamente na medida em que o filho, Pavel, que é operário da fábrica, vai lhe mostrando a necessidade de participar de outro mundo mais interessante que o confinamento numa cozinha. Mas Nílovna quer mais, quer aprender a ler para compreender o que o filho e os amigos leem clandestinamente até altas horas da madrugada. Em pouco tempo ela vai superar todos com a sua força, inteligência, coragem e solidariedade ideológica, não mais tomando como base a religião, porem, a ética que desabrocha perante a dor e o abandono do homem por Deus. Nílovna não é ateia, mas esqueceu de rezar...

O romance A Mãe é um grande exemplo de como fechar um círculo opressivo e desumano. Nílovna, como qualquer ser humano livre, jamais abandonará a cozinha ou as panelas. Mas o fará agora como escolha, e uma escolha não para ser útil aos filhos e sim como parceira de uma história que tem um sentido, que é a conquista de si mesma. Ela não só cozinha, lava, costura, estuda, cuida de camaradas enfermos no Hospital, dialoga com camponeses e operários, como viaja a pé ou de trem longas distâncias para distribuir material de propaganda revolucionária. Pavel está preso com outros. Os que ficaram apoiam a mãe em todos os sentidos. Apesar da diferença de idade, vivem juntos a mesma realidade. A realidade dos que conseguem forjar a sua própria independência. “Só são verdadeiramente homens aqueles que arrancam as algemas da mente humana. Pois agora, a senhora também, por esforço próprio, tomou a si esta tarefa”, diz Andrei a Nílovna, emocionado com o aprendizado da aluna.
 
Foto: domínio do Google
 










Ana Barros

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