quinta-feira, 10 de outubro de 2013

ONDE TAPERA É CASA







Uma das lições mais admiráveis do budismo é a prática do desapego. Exercício que não é para qualquer um uma vez que requer do espírito disciplina no contentamento com nada. Um exemplo do quão difícil é desfazer-se das coisas materiais e atingir o nirvana é contemplar uma casa velha e abandonada. Passamos por ela e lembramos que ali nascem, vivem, lutam e morrem gerações inteiras, todas, direta ou indiretamente, com apego àquele imóvel que, querendo ou não, deixaram para trás com a chegada da velhice, da civilização ou da morte.

Com o passar dos anos os donos também passam. São outros os apegos e tradições e o velho verga-se para dar passagem ao novo. Este, na ilusão de ser eterno, vira as costas ao passado moribundo de beira de estrada ou dos fundões de alguma região, a qual é questão de tempo ser descoberta por especuladores. Se não fosse assim não haveria os grandes centros com suas torres de concreto batendo no céu como a esnobar dos mortos esquecidos no monturo de demolição cá embaixo.

Duas vezes ao mês faço o mesmo percurso rumo ao sebo Cafundó Café & Arte, em Jaçanã (RN), e passo em frente ao sítio de um tio avô, Zé Casado, na comunidade Riacho Salgado, entre Santa Cruz e Coronel Ezequiel (RN). Fico olhando pela janela do ônibus a tapera, cuja destruição se aprofunda a cada dia e temo pelo desmoronamento total antes de registrar algumas fotos do espólio. Mas graças à última viagem ter sido feita com meu irmão Deda Barros, pude descer do carro e fotografar o imóvel de tio Zeca e de sua mulher Zefa, falecidos de velhice em residência fixa na cidade. Os filhos, netos e bisneto deixaram a propriedade para trás e foram também viver em centros urbanos. Hoje não se sabe quem são os donos da terra com o casebre insistentemente de pé, pois caminha para o seu segundo século mesmo com a estrutura capenga.

Quem conheceu a família que ali chegou, habitou e construiu uma história de amor à terra, ao homem e aos pertences, isto é, de apego do mundo, percebe que, apesar de tapera, aquele imóvel ainda é casa, haja vista a memória ressuscitar o tempo.

Ana Barros



quinta-feira, 3 de outubro de 2013

AMULETO



Apesar de toda tecnologia do mundo virtual e positivismo de um homem saturado de ciência e objetos de consumo, através dos quais pensa viver no "melhor dos mundos", há uma vivência paralela, à margem e bombardeada pelos fragmentos desorientados e às vezes loucos que são jogados sobre quem vai passando ao largo. Para livrar-me da descarga venenosa pensei: aonde buscar o antídoto? Noutro tempo, não muito longe, procuraríamos o curandeiro, a benzedeira e a cartomante para os banhos de sal grosso, de ervas, adivinhação do futuro e a promessa de cura com ramas verdes, murchas à medida que iam surrando a imundície que emporcalhava corpo e espírito. Porém hoje...

É bobagem achar que as coisas mudaram com a chegada das redes sociais, principalmente do Facebook, que nos dão a ilusão de que somos altamente bem informados e resolvidos, não carecendo mais de patuás nem de despachos em encruzilhadas, bastando para isso compartilhar com os amigos virtuais fotografias e informações nem sempre belas nem confiáveis. Pois bem, nunca se viu tanta mandinga, catimbó, patuá, pai de santo e terreiro como nos dias atuais.

Diante de um tempo conceitual ao extremo, que apenas passa o dedo sobre a tela e o aparelho vai fazendo e definindo tudo, cabe aqui a pergunta: para quê o místico se a frieza da máquina nos salva das crises existenciais próprias de um romantismo cujos ídolos e mitos não só estão mortos como ultrapassados? Porém, a realidade paralela à virtual diz que homens e mulheres continuam sentindo e sofrendo igualmente a todos os seus antepassados, pois, apesar da sofisticação de hábitos cosmopolitas, cuja massificação dá a ilusão de que todos são iguais, continuamos humanos, sozinhos, frágeis, doentes, carentes e mortais.

Arrastada pela onda que leva todos, até mesmo os mais reacionários, me vi diante do artesão cabeludo da Praça Padre João Maria, espaço famoso de Natal pela aura não só mística como também hippie dos anos oitenta, pedindo socorro para que me ajudasse limpar o lixo que emaranhara-se na minha cabeça ainda com fios de cabelo amarrados ao museu dos costumes. Com voz pausada de guru baiano ele disse: "Você não deve olhar o lixo de frente... não o encare jamais!” Sua ênfase lembrou o mito de Perseu na versão de ítalo Calvino: “Para decepar a cabeça da Medusa sem se deixar petrificar, Perseu se sustenta sobre o que há de mais leve, as nuvens e o vento; e dirige o olhar para aquilo que só pode se revelar por uma visão indireta, por uma imagem capturada no espelho”. Qual é o seu signo, jovem?" "Libra", respondi. "A sua pedra é o citrino, esta aqui." Mostrou-me um lindo amuleto pendurado num cordão preto e o amarrou no meu braço contra os olhos do monstro que porventura viesse em minha direção.

Gostei da elegância do artefato preso acima do pulso, o que me fez chamar a atenção para a mesma prática em corpos de crianças nordestinas e, bem recente, na cabeça de meu neto Heitor que, por orientação de um remanescente da cultura africana, experimentou o que foi comum em bebês para sobreviver às intempéries da natureza e à maldade dos homens, estas, em tudo iguais umas às outras. Para isso, colava-se uma trouxinha de alguma mistura semelhante à cera de abelha numa das mechas do cabelo do pequeno ou amarrava-se o patuá num cordão e pendurava no bracinho ou no pescoço do recém-nascido. Não sei se interferiu em alguma coisa na existência de Heitor e dos demais meninos e meninas nordestinas. Sei apenas que continuo com o meu amuleto preso ao braço em posição estratégica contra o mau-olhado.

Ana Barros