quinta-feira, 23 de maio de 2013

O VESTIDO DE QUILARA



                                       D. Clara


Descendo a serra entre Jaçanã e Melão, interior do Rio Grande do Norte, encontro d. Clara, antiga louceira já beirando os noventa anos, a quem minha avó Rita Pereira chamava Quilara. Encontro Quilara com o seu conhecido vestido floral e o cajado de pau de vassoura. O carro passa lento pela velhinha dando tempo de pensar uma crônica envolvendo a devota de Cícero, pois a conheci no caminho de Juazeiro, em 2011, quando seguia romaria com outros penitentes, entre os quais chamava a atenção pelo vestido, pela idade e a perseverança em fazer a viagem mais uma vez, pois repetia a tradição deixada pelos pais, em companhia dos quais visitou o santuário até eles não poderem mais.

Daquela vez, as flores e o tecido de seu vestido perturbaram a minha imaginação até reencontrá-la dois anos depois, ainda mais velha, com a mesma estampa e o pau de vassoura como bengala. Num instante, surgiu inteira a crônica, que não tem a ver com Quilara, mas com o seu vestido de malha estampada e a história dos panos de algodão, este, que vestia homens, mulheres e crianças, além de cobrir a mobília da casa, e que hoje é trocado por malhas baratas vindas da China.

Resisto ao desejo massificado das compras de malhas a preço irrisório e vulgarizado por interesses de mercado, quando vejo as ruas tomadas por molambos. Passemos, pois, os olhos pelas lojas e calçadas das pequenas cidades às dos grandes centros, nestas, aonde sacoleiras de todos os recantos vão à cata de artigos ordinários, e vamos nos deparar com uma praga de longos e calças listradas, blusas, saias, cangas de estampas e colorido ridículo, cujas costuras e tingimento vão se desmanchar com a primeira lavagem.

Não encontro outra definição para esta aculturação escancarada senão ausência de raiz de povo, cuja fraqueza troca valores regionais por valores regionais de outros povos que não se desfazem facilmente dos seus. Mastigando esses pensamentos rabugentos, lembrei do fedorento e quente volta ao mundo, tecido sintético importado dos Estados Unidos, entre as décadas de 1960 e 1970, época de seca, desemprego e fome por aqui, e consumido maciçamente por nós nordestinos, não só pelo preço baixo, mas também como algo revolucionário uma vez que o ferro de passar, ainda à brasa, era aposentado junto com as anáguas e a goma, que dava às roupas a impressão de volume e vincos perfeitos às calças de linho dos homens.

Mas o volta ao mundo, cujo nome representava textura flexível, sem dobras nem amasso capaz de dar uma volta em redor do universo e continuar tão liso quanto antes, substituía o tecido adequado ao clima tropical, que é o algodão. Paradoxalmente, nas mesmas décadas, passava-se a consumir outro produto largamente em moda na América do Norte, o jeans, cujos fios ainda são produzidos em parques industriais de países periféricos, inclusive o Brasil estando entre os grandes produtores mundiais.

Voltando a Quilara, descubro enfim o porquê da forte impressão que a louceira me causou com o seu vestido floral. Não foi a sua libertação dos incômodos do ferro de brasa nem a facilidade com que encontrou o artigo a preço de banana (?) na feira. O que chamou a minha atenção naquelas flores sobre o tecido mole, foi a memória da menina que ia à missa no domingo e ficava olhando os vestidos novos de algodão com a sua atemporalidade, uma vez que o tempo ainda era domínio dos homens e de suas ferramentas rudimentares. E foi no reencontro com Quilara descendo a serra, que se estendeu à minha frente um jardim de lembranças de um tempo de saias com pregas até o tornozelo, casacos de manga três quartos, lenço ou mantilha na cabeça, calças e paletós de casimira ou linho feitos sob medida pelo alfaiate, e um campo branco de capulhos que, nas fábricas e depois no interior das casas e dos corpos – com as suas calçolas e ceroulas –, se transformariam em flores de todos os tamanhos e matizes.

O vestido de Quilara, excluído dessa visão onírica da infância, representava apenas uma época em que somos levados a unir os interesses mercadológicos da acessibilidade, consumo e preço baixo. O cuidado com a textura, com a estampa adequada à ocasião, o estilo campesino com seus saiotes franzidos e casacos ajustados à cintura, ficaram para trás com o esquecimento do algodão e a diferenciação de jovens e adultos por meio dos usos.

Ana Barros

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