quarta-feira, 13 de março de 2013

QUANDO OS OBJETOS SE TORNAM INVISÍVEIS



Há pessoas que não dão muita importância aos móveis, utensílios e outra infinidade de miudezas que compõem a atmosfera da casa. Passam os anos e aqueles objetos continuam ali, no mesmo lugar de sempre. E se os donos vivem vida longa aí é que nada sai do lugar mesmo. Mas o interessante é que, com o passar do tempo, todos se acostumam com os espaços ocupados e ninguém dá mais pela presença daquela cama velha, do fogão da vovó, da cadeira com o pé manco do tio velho, ou do porta-toalhas que encardiu no lugar onde todos enxugam a mão enquanto dão uma espiadinha no espelho oxidado, sem enxergar que o pequeno móvel envelheceu, que ninguém o valoriza senão pelos donos da casa que ainda vivem. Assim aconteceu com o porta-toalhas de minha avó materna, Rita Pereira. Depois de sua morte, ano passado, aos 92 anos, a família fez a partilha entre os filhos e netos e doou o que era para ser doado. Depois de alguns dias, amigas de Natal se hospedaram na casa e então, a surpresa! Edilma Lopes : "Ana, por que esse porta-toalhas não está no Cafundó?" E foi aí que percebi o pequeno móvel gasto dos nossos dedos, do nosso suor, das nossas sujeirinhas de criança lavadas na bacia de ágata branca da minha avó D. Ritinha, das inúmeras enxugadas de mãos e de rosto do meu avô Chico Pereira quando chegava suado do roçado. Imediatamente pedi permissão para "tombá-lo" no Cafundó Café & Arte. Hoje ele se encontra decorando uma das paredes do Sebo. 


domingo, 10 de março de 2013

PORQUE DESLIGUEI A TV

Já faz algum tempo que resolvi desligar o aparelho de televisão. Esqueci que ele dorme esquecido num canto qualquer da casa. Teve vezes que liguei querendo me distrair um pouco, mas logo o enfado em ver a repetição exaustiva das falácias que, num parto doloroso, uma vez que dói mexer nas emoções cristalizadas, resolvi arrancar de mim.

Se gozamos ao assistir novelas na TV, enfiados até o pescoço em mentiras, traições e falsidades, com o tempo e a falta de um meio de cultura melhor, estas passam a ser citadas como verdade. E arrancá-las de nosso cotidiano custa o preço do silêncio nos cômodos da casa e à entrega, ou não, a outros veículos mais inteligentes.

Como sou dada ao retorno da mesma coisa até sentir o zero da necessidade, resolvi ligar a TV na sexta-feira, final da novela da Globo, Lado a lado. E foi como se tivesse chegado de viagem a um país distante, onde não se valorizasse cultura semelhante àquela que a tela me oferecia como motivo para a minha educação feminista, pois, estrategicamente, a Globo transmitia o fim do folhetim no Dia Internacional da Mulher, oito de março.

Como já fazia muito tempo que não assistia novelas, quase perdi os sentidos ao ver a personagem miserável em que a Globo havia transformado a atriz Patrícia Pillar. Não compreendi por que alguém ainda perdia o seu tempo sentado de frente para a TV para assistir tamanho absurdo cultural. Mas quando se trata de algo chamado arte ou cultura para o povo, feito para o público, tive o cuidado de demorar mais um pouco em minhas reflexões para poder escrever o que descobria em minhas próprias experiências, as quais são semelhantes à de todos que desligam a TV. E foi com orgulho e vitória que percebi de vez a nulidade da TV em minha vida na noite de sexta-feira, oito de março. Orgulho porque estava completamente livre de algo que não me fazia falta, igualmente a uma daquelas paixões pela qual sofremos horrores e, passados alguns meses, ou anos, enxergamos envergonhados, apesar de não haver vergonha nenhuma em se apaixonar, o desperdício de tempo e de energia com algo tão inútil como a paixão. Vitoriosa pelo salto de qualidade em minha escala de valores. Não posso chamar de outra coisa senão de aberração, apologia aos instintos mais baixos, a exploração de valores mesquinhos em personagens que, em vez de crescer, de amadurecer em seus papeis, tornam-se figuras raquíticas, absolutamente más, sem o mínimo de sensatez, ou o contrário, anjos, bondade absoluta, ingenuidade ridícula e insana. Ou seja, um maniqueísmo patológico que leva o que se impõe com a força bruta de seu caráter à condição de mostro, marginal, bandido sem redenção nem atenuantes morais. Quem é mal é mal o tempo todo, tira vantagem o tempo todo sobre pobres vítimas da bondade total para no final pagar todas as penas como um demônio queimando no fogo eterno do inferno. Isso para deleite do telespectador, que frequentemente interfere na trama diabólica.

Confesso que já senti empatia com esses tipos mesquinhos da TV. Há como que uma necessidade de vingança virtual, uma vez que na realidade há a autocensura e a lei punitiva, na crueldade repetida todas as noites nos capítulos que parecem não ter fim. Há um gozo mórbido na tortura que é a novela feita para estimular os valores menos lapidados pela consciência despertada. Podem ser os mesmos valores que encontramos nas tragédias de Shakespeare, nas novelas de Dostoiévski, em Sófocles, entre outros do mesmo poder psicológico na construção de personagens complexos porque humanos.

A diferença, entretanto, é que nestes há uma moral das alturas, uma ascese do pensamento que reflete, busca e supera. Nada mais tocante que a agonia metafísica de Raskolnikov em Crime e Castigo, com a sua redenção na dor e no castigo, este, não imposto pelos homens, mas pela consciência do indivíduo que acusa e liberta. Isso é a moral dos grandes da literatura... Édipo, cego para a banalidade do devir mas lúcido do seu crime, que é a persistência no conhecimento que cega para dar à luz. Sempre uma moral para aquele que entra no livro e se confunde com os tipos descritos com profunda compreensão, amor e empatia com o homem comum perdido no tempo existencial.

As novelas da TV brasileira, apesar do conhecimento emitido por alguns antropólogos a respeito de seu poder na releitura de assuntos como feminismo, homossexualidade, meio ambiente, etnia, entre outros, estão fora da capacidade luminosa da moral. Se existe nelas uma moral, é a moral do pequeno, do vazio de dor e cura. A imagem da baronesa Constância (Patrícia Pillar), humilhada por todos e abandonada numa fazenda por aqueles a quem fez o mal, resume a insignificância dos personagens. Se neles há crescimento, é o crescimento do abismo entre o animal e o pensamento.

Ana Barros