quarta-feira, 12 de setembro de 2012

O grito

Quem usa o transporte coletivo nas capitais nordestinas está familiarizado com jovens que todos os dias entram nos ônibus para divulgar o programa de recuperação de dependentes químicos ao qual fazem parte. São rapazes entre 18 e 24 anos que fazem o intercâmbio com outros internos que vão para o Estado de onde vieram. Mochila do lado, camiseta com o nome de Jesus, eles discursam com voz alta e cadenciada.

O que mais chama a atenção nesses rapazes, aliás, nunca se vê uma mulher entre eles, é a articulação emocional e carregada de realismo no depoimento de suas misérias. Fico atenta à conversa alta e enfadonha, pois nenhum passageiro gosta de ser incomodado nessas viagens entediantes do dia a dia das capitais. Mas, prestando bem a atenção naquele grito, rape cru, sem acompanhamento, pode-se extrair uma experiência de vida e consequentemente a morte de valores. Aqueles jovens desceram ao inferno e, no limite da destruição, entregaram-se nas mãos do doutrinamento católico, espírita ou protestante, que promete resgatá-los uma vez que o Estado brasileiro não dispõe de programas sérios de enfrentamento da questão, deixando quem precisa de ajuda correr de um lado para outro em pontos de ônibus em busca de socorro.

Quase todos dizem já está fora das drogas e do crime há algum tempo. Casaram, tiveram filhos. Uma família resgatada graças ao recolhimento em casas de apoio, cuja terapia é a via crucis da expiação pública. Além do desafio em se jogar no mundo hostil com as suas dores e as dores daqueles que os amam, vendem kits com canetas, bolsinhas para celular e outras miudezas a preço simbólico para ajudar na manutenção da instituição.

Diante da indiferença social, são apaixonados como um mártir. Acreditam e querem convencer aqueles que os desprezaram que são capazes de reverter a história, de ser um igual. Sabe-se porém o quanto é difícil acontecer essa empatia uma vez que a própria sociedade esconde neuroticamente as particularidades de quem diz que é diferente daquilo que pauta a cartilha moral. Para aqueles vindos das classes populares: o subúrbio, o gueto, a rua, a penitenciária e o manicômio. Àqueles de alto poder aquisitivo: o acobertamento em condomínios fechados, em clínicas particulares de recuperação, em longas viagens ao exterior, jamais a exposição pública dentro de um ônibus como terapia.

A última vez que vi e ouvi um desses rapazes falando o seu rape, comparei a cena com a mesma situação se fosse um jovem de classe social elevada. Para este a confidência com o psicólogo numa sala privada, longe de ouvidos e olhos curiosos. Para aquele, o eleito entre os milhares que sequer chegarão ao estágio do ônibus, a publicidade, a verbalização sem paredes nem psicólogo atento a cada detalhe. Para um, o escondido, o privado, a confiança e socialização. Para o outro, o escárnio e indiferença da maioria dos passageiros que chegam a ameaçar com denúncias à polícia numa demonstração de ódio pela pessoa que se revela como é diante do mundo na esperança de ser aceito e integrado. No entanto, observando a fundo o discurso repetido a cada subida no ônibus, encontramos naquele fluxo ritmado uma riqueza simbólica e uma profunda vontade de viver. E não há terapia mais humana, mais sensível, mais quente do que se expor perante o outro e vomitar o dejeto reprimido.

Ana Barros

2 comentários:

  1. As drogas transformaram-se no verdadeiro flagelo da periferia. Uma tristeza assistir ao festival de balas perdidas cada vez mais comum nas comunidades.

    A desintegração da juventude interessa a muita gente. Aqui, o dionisismo fundado na dilaceração do sujeito não entra em questão, porque a droga atua precisamente como uma fuga da realidade, e não como um lançar-se sobre ela (ação própria do culto báquico).

    O jovem é exposição. Afirmação perante os outros. Essa é a força que nos faz crescer.

    abs

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  2. Uma parcela dos jovens enxerga a tempo essa verdade e aproveita o máximo a fase dionisíca. Lamentável que a outra parte, por um conjunto de fatores, não compreenderá a tragédia em que afunda, pois, sem o lampejo de uma moral que os afirme como indivíuos, chegam aos ônibus, quando não, às penitenciárias, aos hospitais, às ruas ou ao cemitério.
    Ana Barros

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