segunda-feira, 30 de julho de 2012

O fim e o princípio


Quando conheci o Juazeiro do Padre Cícero (CE), em agosto de 2011, fiquei surpresa com a presença de um pau-de-arara vindo de São Luiz (MA). Era o único do gênero no meio de dezenas de ônibus e vans provenientes de todos os cantos e recantos do Nordeste. À noite, fotografei o veículo com os romeiros dormindo em redes armadas sob a lona. Pela manhã, logo cedo, procurei o pau-de-arara para finalizar o registro, no entanto, frustrei-me ao ser informada pelos vizinhos do rancho onde pernoitei que os maranhenses haviam partido na madrugada, driblando assim a Polícia Rodoviária, uma vez que não é mais permitido esse tipo de transporte na BR.

Esta passagem veio à memória ao voltar a Jaçanã (RN) e encontrar uma realidade bem diferente daquela década de 1970, anos da grande seca, quando o pau-de-arara era o transporte sinistro que levava embora homens jovens e produtivos como bóias-frias das lavouras e indústrias do Sul maravilha. Para trás deixavam mulher e filhos famintos. Algum tempo depois todos estariam juntos num barraco da periferia da grande São Paulo ou de outra região em expansão como Brasília, Minas e Goiás. De lá para cá pouco sabemos do que sobrou da vida desses retirantes, quem são e o que fazem hoje e que cultura herdaram os filhos e netos da geração do êxodo.

Mas isso é assunto para outro momento com mais detalhe histórico-sociológico.  O que interessa aqui, portanto, é a percepção da ocupação do espaço deixado pelo pau-de-arara com a ausência de seus passageiros tristes – imortalizados por Luiz Gonzaga na Triste Partida, poema de Patativa do Assaré – e conseqüente modernização das estradas e do transporte urbano.

Jaçanã é apenas um exemplo micro da transformação que vem ocorrendo no interior do Nordeste no intervalo entre o pau-de-arara e o avião. Com quase dez mil habitantes, a cidade cresce em ritmo acelerado e mostra-se com um forte potencial turístico junto às cidades vizinhas que formam a Borborema potiguar, cuja ascensão econômica e cultural vem se dando pela abertura de universidades e conseqüentes instituições de apoio, pesquisa e contratação de mão-de-obra especializada.

Quem observa cidades do perfil de Jaçanã com saudosismo de uma época pacata, sem a correria do mundo expandido, vai encontrar apenas a decadência corrompendo todo o tecido social. Vai dar ênfase à crescente onda de crimes, assaltos, prostituição, tráfico e consumo de drogas. Enfim, lamentará que o interior se nivelou em desgraça aos grandes centros. Convenhamos uma visão real e pessimista. Porém, há outro olhar, real também, mas afirmativo, que pode ser direcionado à outra margem. E é essa margem que comecei a analisar em minhas caminhadas e passeios de bicicleta pelos arredores de Jaçanã.

Vi no começo e no fim do dia ônibus, vans, motos e bicicletas transportando crianças de casa para a escola e da escola para casa. Já é parte da paisagem das cidades brasileiras o ônibus amarelo modelo americano com o nome na lateral ESCOLAR. São comuns também os benefícios do governo federal às famílias pobres, bem como a extensão dos Institutos Federais de Ensino- IFs. Iniciativa criticada por parte da mídia e por alguns que ainda mantêm a cabeça na casa grande e as decisões entre a senzala e o pau-de-arara.

Basta contemplar a cena matinal quando dezenas de crianças e jovens, em vez de irem para a roça com os pais vão à escola, para descobrir que algo positivo se constrói na educação da cidade. Nenhuma saudade de uma época em que a ênfase era dada à agricultura familiar, não esta que se pratica hoje com uma política de crédito, tecnologia e fixação do homem à terra. Mas àquela na qual os pais aumentavam a prole para o trabalho braçal e dali ninguém mais saía. Vidas limitadas entre o roçado e o fogão; o estômago e o cemitério.

Na efervescência multicultural contemporânea enxerga-se o aceleramento da desconstrução da metafísica da sobrevivência, da mística quase beata da simplicidade misturada ao messianismo, humildade, lassidão e barriga cheia. O documentário O fim e o princípio (2005), de Eduardo Coutinho, é uma riqueza de detalhes dessa vida desenhada pela enxada cortando a terra fertilizada com as sementes da miséria. Eduardo aprofunda a história até o fecho com a velhice de mulheres e homens consumidos por uma existência plana. O cenário é de decomposição. As fachadas, as paredes, os móveis, os corpos, a história de cada um, são corroídos, imprestáveis num tempo que os acomodou na indiferença dos dias sem ação.

Mas nem tudo está perdido no documentário de Eduardo Coutinho. O próprio nome é um alento: O fim e o princípio. E o princípio, no filme, é a simbologia do real que acontece nas cidades do interior nordestino. É a jovem professora, os agentes de saúde, os estudantes, meninos e meninas que substituíram a lida na lavoura pelo saber, que rompem o marasmo, a nulidade dos velhos impotentes em suas cadeiras de balanço, ou sentados perto do fogão de lenha (cenas do filme) com seus cachimbos acessos na chama da lamparina de querosene esperando o filho que partiu há trinta anos, ou o benefício da previdência no final do mês para comprar fumo e cachaça na cidade.

Quanto ao pau-de-arara, é lamentável que ainda sobreviva no estado do Maranhão num momento em que viver bem pode significar rompimento com a ignorância que perpetua a miséria material e intelectual de um povo que se descobre capaz de agir além das fronteiras do fogão e da casa grande, além de nomes ilustres da política paternalista e oligárquica que teimam em não deixar o borralho da cultura.

Ana Barros

sábado, 21 de julho de 2012

O enforcado


E eu a saltar fora do laço antes do aperto fatal ri da malandragem diante da morte e mais uma vez dava uma chance à mentira que equilibra para mais adiante balançar a corda e de novo jogar à terra o fardo humilhado. O fardo fez um nó nas costas e o pescoço grosso solta o enforcado que, feito um cão velho e pulguento, ergue-se das cinzas já nem um pouco desprezíveis, sacode o pelo e deixa cair os carrapatos. Até gostaria de novo pranto... Força um choro, esfrega os olhos, geme... Mas é tarde e as costas doem no lugar das crateras calcinadas lembrando que devo levantar, pois um resfriado me levaria ao buraco raso. Ergo-me e vou tomar o meu copo de café com leite. O jornal velho e amarelo de antes de... Oh, perdi os óculos e os jornais esquentam o forro do meu quarto. Os jornais, o café com leite quente, a pinga depois de todos e nada mais me tira a atenção a não ser de novo a lembrança de que não lembro mais. Por que não sentar-me à mesa do Café e lamentar com algum daqueles homens matinais que sentam ali todos os dias com o mesmo bocejo e o cheiro de suor da noite? Dizer que o sol abriu meu crânio e queimou o labirinto. Mas esqueci quando vi os dois camaradas de frente um para o outro calados olhando para nada. E eu tenho nada nos miolos. Entornei o copo de pinga e senti as lágrimas quentes e chorei porque queimava dentro e eu estava vivo e sentia o que além de mim é vento

Ana Barros