domingo, 22 de abril de 2012

A estética do feio (II)


Saí de casa sem nenhuma pretensão à felicidade. Saí por pura vontade de mundo, nada mais. Nem tédio nem alegria, apenas o contentamento por achar-me entre estranhos e saber que as possibilidades de me desencontrar eram enormes e nada fazer para ser diferente. 

Pisava João Pessoa pela primeira vez. E, ao chegar naquela cidade calma, limpa, organizada e sem o comércio caótico de ambulantes no Calçadão da linda praia de Tambaú, tive a sensação de que ali encontrava “a promessa da felicidade”, que eu havia desprezado na turba de Ponta Negra, mas ressurgida naquele paraíso onde os homens pareciam ainda mamar nas tetas da Mãe-Terra.

Logo deslumbrei com a aparência de paz e equilíbrio surgida das ruas e casarões conservados como se os seus donos doutrinassem do além regras e costumes, ainda tão vivos entre povo e cultura.

À noite, como em todas as excursões, os grupos se dividem por afinidade e ganham os espaços oferecidos pelo pacote turístico ou então se aventuram a conhecer os recantos mais exóticos e excluídos do roteiro fechado entre agência e guia. Mas em J.P., como repetia o guia tagarela, só havia três opções de lazer: a Orla de Tambaú, o Shopping Manaíra ou ficar em casa. O meu grupo escolheu passear no Calçadão de Tambaú. E a surpresa foi enorme ao me deparar com uma realidade completamente oposta a que vivenciara em Ponta Negra. Encontrei pessoas felizes passeando como se estivessem numa pracinha do interior. E não são doidinhas nem playboys que invadem o Calçadão, não. São pessoas simples, comuns do dia a dia de uma cidade de porte médio como J.P. São moradores acostumados a passear, sim, passear como antigamente, sentar nas beiradas das calçadas, namorar, entabular uma conversa com o compadre ou a comadre, chupar roletes de cana, sim, em J.P. vende-se roletes de cana, enormes tapiocas recheadas de coco, carne e queijo acompanhadas com enormes canecas de café servido em bules de alumínio. É um momento de encontro, diversão e gastronomia caseira, daquelas de sentar no mercado e comer com muito gosto, sem a preocupação com a fria e falsa etiqueta de shopping center.

Depois de andar para cima e para baixo, de me acomodar entre dezenas de pessoenses famintos e alegres e de comer a minha tapioca com coco e tomar a caneca de café preto, voltei ao Calçadão na esperança de encontrar algo comum em outras capitais: a pulsão urbana, a vida noturna que escorre nos becos, a contradição escondida à luz do dia dos normais. Mas quê! Nenhum sinal do diferente, nenhum mendigo, nenhum noiado, nenhum ladrão; nenhuma prostituta, nenhum veado, nenhuma garota de programa, nenhum punk ou tribo de preto, nenhum camelô vendendo qualquer tipo de mercadoria. De repente parei de andar e sentei-me com os demais na beira da calçada e me espantei com a tranqüilidade que tomou conta de mim diante daquela ausência de movimento e decibéis acima do suportável no interior de carrões importados, de crianças e marmanjos insistindo por uma esmola ou pela aquisição de alguma quinquilharia. Porém... não o estalo do belo sentido no caos de Ponta Negra: “como, será possível que em tão pouco tempo eu tenha esquecido o outro lado da vida pulsante, das forças antagônicas encarnadas naquele domingo em Ponta Negra?” Foi então que me dei conta de que os valores, moralmente fortalecidos e adormecidos na cultura do em torno, ainda sombreavam o meu poder analítico tanto quanto a opressão simbólica dos casarões sobre os costumes de J.P., a qual, tanto no nome quanto na bandeira do Estado da Paraíba, com seu slogan Nego (afirmação do próprio João Pessoa na querela da política café com leite) banhado de vermelho, sangue de João Pessoa, e do preto, luto por João Pessoa (governador da Paraíba assassinado em 1930), carrega o peso da vaidade de um único homem e da exclusão da maioria, justificada pela História oficial.

Retornei a Natal três dias depois cheia da ingênua alegria romântica de paraíso reencontrado e logo quis compartilhar com meu filho a surpresa de encontrar um lugar tão natural e ainda limpo da civilização globalizada. Qual foi o meu desapontamento ao ouvi-lo dizer enfático: “Mãe, João Pessoa é uma cidade macho; povo e elite!” Foi aí que a minha ignorância sócio-antropológica foi ao chão. Foi aí que enxerguei o porquê de “limpeza” da cidade; de seus prédios sem as pichações e sem os graffitis tão característicos dos centros urbanos da atualidade; do secretário estadual de cultura Chico César declarar à imprensa que o governo não iria financiar duplas sertanejas nos festejos juninos; da ausência dos “malucos”, dos travestis, dos drogados, das garotas e dos garotos de programas, dos vendedores ambulantes, dos moradores de rua, enfim, de tudo aquilo que, no meu tédio moribundo-pequeno-burguês, havia odiado em Ponta Negra.
Percebi que em J.P. havia, voluntária ou não, uma contenção, um controle das pulsões de homens e mulheres. E como na existência nada acontece sem o seu oposto, sem a sua negação, imaginei a sede de liberdade e de contradição enclausurada, escondida, dissimulada em alguma parte da cidade. Possivelmente há indivíduos atuantes na periferia do núcleo cultural que, independentemente do poder cristalizado, transcende de forma niilista ou não a morte da cultura.

A imagem perfeita para concluir este artigo não poderia ser outra senão a de Báucia e Filemo, personagens míticas do Fausto (Goethe), cuja casinha em cima de um monte era o que ainda insistia de permanente num mundo fluído e moderno. Fausto, em sua cegueira desenfreada por desenvolvimento e fuga do tédio, não suporta a visão daquele pedaço de memória e manda tocar fogo nos velhos e na casinha. Ergue-se no local mais um novo empreendimento.

Ana Barros

2 comentários:

  1. notei uma mudança de percepção(estetica e politica -socioantropologica)da cidade muito rapida quando vc recebeu a observação do seu filho(pedro);
    quando vc diz que por incrivel que pareça encontrou a felicidade naqula cidade pacata,onde andava GOETHE no que se diz :formação de conceito estético?

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  2. Olá, querido Pinheiro!
    Olha, não foi muito rápida, não. Um segundo personagem apenas faz com que eu retorne ao primeiro texto com a sua complexidade urbana, podemos dizer assim, mais explícita, visceral e nervosa diante das contradições que a envolve e a repele. O primeiro texto teve início no final da década de 1990 e o segundo veio agora em abril.Acho que os dois se completam numa demonstração proposital de ignorância dos espaços urbanos com suas feridas e vísceras expostas. Meu filho surge aí como o novo, que tanto gosto e tento acompanhar em minhas mudanças pessoais, culturais e, consequentemente,literárias. Quanto a Goethe, acho que ele tem uma cosmovisão trágica do homem e seus espaços. Se isso é estética, Ponta Negra esté bem mais próxima do caos moderno-contemporâneo de Goethe do que João Pessoa. A paz que aí experimentei nada mais foi do que um instante entre a minha necessidade de imobilidade e a realidade pulsante que me esperava do outro lado.
    Beijos da amiga,
    Ana Barros

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