quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Trama

Quase nada do que foi é reconhecido
nestes dias em que o olho
claro e luminoso pouco a pouco escurece
e se volta para dentro onde escondeu tudo
que pilhou do mundo
Quase nada do que foi é reconhecido
nestes dias em que a tagarelice converteu-se em mudos e
em lugar da raiva que corrompe,
o vazio que age e age porque é vazio
de tudo aquilo que ocupou inchou e transbordou até a flexão da dobra
maior que se arrasta ao esgoto que corre em direção à coisa alguma
E quando a inquietação à noite alçar à trama
Necessidade vestida de real joga os dados...
... e ganha

Ana Barros

sábado, 19 de novembro de 2011

Cru

Eu ainda não sabia o que fazer com a arma que papai me recomendou antes de morrer. Não sabia o que fazer do objeto nem do cadáver estendido no colchão de palhas. Por que em vez de uma arma inútil não comprou um colchão decente? Talvez não sentisse necessidade de uma cama melhor nem de um colchão confortável àquela altura da vida. Mas dormir mal é apenas um detalhe na vida de quem se tornou precário em tudo, inclusive na saúde, refleti friamente e constatei que, além de só e miserável papai era sujo. Os lençóis, as roupas e o chão davam mostras de que há muito não eram lavados. Um vão servia de quarto, sala e cozinha e ali tudo se resumia numa mistura insólita de restos de comida, roupas sujas, insetos e vasilhas usadas de muitos dias. Meus irmãos, odiados e mantidos à distância pela ira e o desprezo do velho, ainda não haviam chegado e aproveitei para fazer uma busca e, quem sabe, encontrar algo escondido naquele muquifo que levasse a compreender o porquê de uma arma tão potente quando visivelmente não tinha nada de valor para esconder. Lembrei de papai ainda moço sempre na companhia de um facão embainhado. Achava estranha aquela coisa longa e pontiaguda presa atrás, no cós da calça e que fazia um ângulo na camisa esticada pela lâmina. Vivíamos na iminência dele matar alguém, pois era passional e tivera muitas amantes. Mas uma 12? Para quê se estava arruinado sexualmente? Dinheiro escondido? Jamais acreditaria nesta hipótese vendo de perto o estado de indigência em que se encontrava. Mas alguma coisa de valor, material ou não, havia naquele quarto que justificava a presença de uma arma daquele porte. Farejei feito um cão todos os recantos, mas jamais pensei vasculhar o colchão de palha sobre o qual o velho endurecia, não que eu tivesse algum respeito pelo morto, mas pela repulsa do aspecto imundo e, presumi, ninguém com o mínimo de decência meteria a mão naquelas palhas podres de urina pensando encontrar ali algo de valor, opinião completamente errada como veremos adiante. Por considerar que as coisas de valor como dinheiro, jóias e documentos são escondidas em fundo falso de malas, tomando como exemplo pessoas de caráter mesquinho e desconfiado, como era o caráter de papai, abri uma maleta de couro antiga escondida debaixo da cama. Estava cheia de documentos velhos e fotografias antigas. A foto amarela da colação de grau da minha turma de medicina sobrepunha-se às demais. Tomei um susto ao constatar que aquele retrato tinha mais valor do que os outros uma vez que dava mostras, pelas manchas do sebo dos dedos na superfície do papel, de ter sido muito manuseado. Ter encontrado a fotografia da formatura nas circunstâncias em que me achava provocou uma reviravolta no que eu considerava até ali como sendo a minha consciência de homem livre, de homem extraordinário. Extraordinário no sentido mais individualista do termo, pois há trinta e cinco anos não lembrei um dia sequer que tinha um pai, uma mãe, enfim, uma família. Vivi feliz e sem culpa todos esses anos e acreditei haver cortado os laços com o passado até o dia em que recebi o chamado de papai para me entregar a arma.

Fazia o colegial quando comecei a perguntar “Por que esta família? "Por que esta vida ruim?" "Por que esta cidade medíocre?" "Por quê?...” Rubinho era o professor de sociologia e com ele conheci a revolta. De imediato adotei como princípio básico seguir o mais de perto possível as ações dos homens fortes e sem respeito a nada que lhes ensinaram como verdade. Eu queria ser a minha verdade. E sob o olhar de censura de D. Lourdinha, professora aposentada que guardava os livros comunistas a chave no armário, li todos os autores anarquistas que Rubinho indicou e não tendo mais o que fazer ali, fugi de casa mal completei dezessete anos. Pude então destilar o ódio com quatro amigos com quem dividi um quarto no centro de S. P. Não voltei à minha cidade por quase dez anos e nesse período me chapei todos os dias, escrevi versos ruins, publiquei um conto marginal no Zine do camarada Miguel, vadiei no submundo até me cansar e, sem mais interesse por nada da vida tediosa que passei a levar entre as conversas boçais dos amigos intelectuais da Bodega da Praça, as bebedeiras e as fodas com Teresa Corujão, prestei exame para o curso de medicina. Por que medicina? Perguntou-me certa vez uma colega metida a besta que adivinhara pelo cheiro a minha origem. Pela primeira vez pensei na questão e respondi “talvez por ser um curso de pobre”, palavras de Rubinho quando perguntei por que ensinava “porque sou rico!” disse teatralmente dando um salto sobre o birô e assumindo a pose de um deus olímpico. E foi curiosamente devido ao curso de medicina que as memórias do passado começaram a me cercar. E com que mediocridade os acontecimentos voltaram... Pois bem, fui obrigado pelo coordenador da faculdade a colocar a foto de meus pais no convite da formatura. “É o mínimo que podem fazer pela dedicação deles ao sucesso de vocês”, tentava nos convencer o coordenador sem contudo me enfiar no espírito uma só daquelas palavras hipócritas. Sem expressar nenhum sentimento escrevi umas três linhas numa folha de caderno e mandei pelo correio. Quinze dias depois recebi um envelope lacrado com uma foto, nenhuma carta ou recomendação, apenas o retrato em preto e branco de um casal ainda jovem mas com os semblantes visivelmente alterados pelo mau-humor. Quase rasguei a fotografia, pois sabia que aqueles rostos maltratados e vincados por uma história mal engendrada não cabiam num convite de formatura. Fui o último a entregar a foto e, de fato, meus pais ficaram num cantinho da última página, depois do glamour de todos os outros pais. Procurei não dar importância àquela futilidade, aliás, meus pais estavam no lugar merecido. E pelo olhar indiferente dos dois, talvez nem quisessem estar ali. Depois da festa, mandei para eles, em envelopes e endereços diferentes, o convite e a fotografia que encontro agora na maleta. O fato de endereçar o convite só depois da festa deixava claro que não queria encontrar meus pais e fiz com que o assunto se resumisse à formalidade da foto exigida pelo coordenador. Estou de volta agora não por um querer meu, mas por um chamado de papai que, alguns dias antes de morrer, disse à minha irmã mais nova que tinha um “segredo” para me revelar. E foi neste retorno que o mundo caótico que eu havia conhecido logo cedo, e que por isso havia ido embora, pareceu de repente retornar com a força e o realismo não mais das páginas que li há três décadas mas com a violência de um dique que se rompe no meio da noite sem dar tempo de nos safarmos da morte.

Naquele quarto sujo e diante de um morto vi que envelheci como meu pai também envelhecera. Tal constatação mais a presença da arma poderosa e inútil me jogaram para uma realidade até então desconhecida. Por onde eu andei que não fui capaz de enxergar o quadro patético da minha vida? A negação, que escolhi como estratégia para fugir das influências da família, agora se dissipava deixando no lugar um vácuo tão desesperador quanto o vazio trazido pela morte de papai. Diante do corpo inerte eu só conseguia arregalar os olhos e ver com o cérebro e os nervos em descompasso a informação que chegava crua e fria e que repetia aos gritos: “você é cria deste velho sórdido. Você envelheceu e, como ele, vai morrer também.” Estava diante da história que era a minha história e que jamais havia querido apesar da trama ter seguido à revelia. Arbitrariamente ela se revelava por inteiro e me obrigava a contemplá-la tanto fazia ser de bom grado ou não. Papai e eu, um finado e um vivo, dois velhos jogados na correnteza da individuação que um dia estanca em nós e, impotentes, nada podemos fazer para impedir a leva. Era a vitória da morte que eu conhecia pela primeira vez. Olhei de novo a arma e as dezenas de cápsulas de munição sobre a mesa. Admirei o objeto por ser o único bem ao qual papai havia dedicado atenção nos seus últimos dias. Busquei me lembrar de algo que tivesse guardado e que merecesse a importância que ele dera a uma espingarda. Não encontrei nada. Nem lembranças da infância, nem miudezas dessas que acumulamos numa caixa de sapato como troféus de nossos triunfos. Nada guardei nem acumulei. Nem mesmo os pensamentos de transporte para uma nova perspectiva. Os estudos, a residência médica e depois o consultório e os plantões cimentaram o esquecimento e a indiferença pelo que nunca quis nem admirei. Mas o quê eu não quis? O quê realmente eu quis? Vi quase desfalecido que não sabia responder a estas perguntas. Nem mesmo uma arma vagabunda tive. Diferente do camarada Miguel, que não largava do 38 e de vez em quando ia ao baile e atirava só pra sentir o êxtase das meninas em pânico e da perseguição dos policiais. Nem mesmo um casamento, filhos, papéis indispensáveis na vida de todo o homem de bem... Mas eu nunca fui um homem de bem... Se morresse hoje, os curiosos encontrariam apenas os meus títulos de doutor que serviram apenas para encobrir e negar a minha história, uma história cuja sequência continuava na frente da arma e do velho morto. Queria correr, enfiar a cabeça na terra e nunca mais olhar o que vi ali. Mas algo me obrigava a ver de uma vez só a decadência, a ruína de valores tidos como positivos apenas por um homem, meu pai, a nulidade de todos os esforços de um homem que foi jovem, robusto, viril e que agora endurecia velho e sujo em cima de um colchão de palhas podres. Era a entrada no mundo das inquietações do fim por intermédio do esconderijo de um objeto que corria o risco de ser descoberto com a morte do seu dono. A morte do dono que a adquiriu para defesa pessoal e que agora vinha a morte sorrateira e com ameaças concretas e vencia a espingarda que jamais dera um tiro. Nenhum tiro! “Este velho terá sido um covarde?” Franzi a testa e me aproximei do rosto pálido e frio. Mordi os lábios. Lembrei de papai jovem e vigoroso, sempre espancando mamãe, tiranizando as nossas vidas e dos empregados. Ainda agora, perto de morrer, pedia a presença do filho para revelar um segredo de homem velho somente confiado a outro homem velho. Percebi como damos importância às coisas que um dia, inevitavelmente, vão perder não só o sentido mas todo o nosso zelo uma vez que o nosso tempo está consumado e nada mais é capaz de fazer voltar o começo. Olhei de novo a arma marrom dobrada em duas partes pronta para ser carregada. “O que é que eu tenho a ver com esta merda?” Pensei com tanta raiva que entortei o cano da arma. Eu era o responsável pelo destino de um morto e de um estorvo. Se eu sabia da inutilidade de todas as coisas diante da vida e depois da morte então aquela arma era completamente sem valor com o desaparecimento do dono. Arranjei então um saco grosso, coloquei a arma dentro e partia-a em vários pedaços com a machadinha e depois ateei fogo junto a restos de madeira que encontrei próximo à calçada. O fogo mal havia se apagado quando meus irmãos invadiram o quarto parecendo demônios loucos. Sem se preocuparem com a minha presença, suspenderam o morto e o atiraram no chão. Até então eu não havia percebido o buraco no meio do colchão, agora exposto com a ausência do cadáver que fora jogado longe. Com movimentos precisos de quem conhecia o esconderijo, meus irmãos rasgaram o colchão de palhas com as mãos até o molambo de chitão ser transformado em tiras e a palha voar pelo quarto deixando à mostra o tesouro. Dei um grito ao ver enterrado nas palhas podres de urina um lastro de barras de ouro que, num segundo, foram divididas entre meus cinco irmãos que fugiram sem deixar vestígios.

Ana Barros