quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

O peso da pluma

No primeiro instante admirei a bolsa grande com aplicações de flores também grandes e de cores variadas. Que material? De couro, respondeu a dona. Mas as flores também são de couro? Sim, as flores também são de couro. Passei alguns dias com a imaginação recorrendo àquele acessório com suas rosas imensas tomando todos os espaços da parte frontal. Não conseguia compreender por que alguém se interessava por um objeto tão grande, com flores tão absurdamente grandes, cujo peso provocava mais espanto que admiração.

Entretanto, lembrei que uma imagem não se apresenta só, isolada na cultura que elabora e reelabora modas, tendências, relações sociais e econômicas. Aquela imagem era apenas uma entre as milhares que dançam no cotidiano e desaparecem para dar lugar a uma infinidade de outras. E aí me veio a lembrança do verde-amarelo-azul e branco da Copa, dos tênis de cores carnavalescas, das bijuterias gigantes de múltiplas cores e materiais diversos, das tatuagens, dos bordados do nosso folclore em moda no mundo todo, do excesso de elementos ocupando todos os espaços vazios, das flores múltiplas ornando vestidos, mesas, paredes e até obras de arte de conceituados salões contemporâneos.

LEVEZA E FRIVOLIDADE

Em Seis Propostas para o próximo milênio, Ítalo Calvino compara a Leveza com o peso do pássaro e não com o peso da pluma. No começo do texto diz: “no mais das vezes, minha intervenção se traduziu por uma subtração do peso; esforcei-me por tirar peso, ora as figuras humanas, ora aos corpos celestes, ora às cidades; esforcei-me sobretudo por retirar peso à estrutura da narrativa e à linguagem.” Seu pensamento direciona para o milênio que estava para nascer, com suas complexidades e globalização. A bolsa daquela moça reportava às inquietações de Calvino em relação a uma era que nascia da fadiga de uma civilização tomada por crenças, ideologias, correntes e tendências, isto é, uma cultura pesada de sonhos.

Calvino observa a leveza que assume características de sublimação de peso como opressão. Referindo-se à Insustentável leveza do ser, de Milan Kundera: “o romance nos mostra como, na vida, tudo aquilo que escolhemos e apreciamos pela leveza acaba bem cedo revelando de um peso insustentável.” Aqui percebemos a complexa relação com o mundo físico na qual se depara o homem contemporâneo. No tumulto dos objetos e das imagens ora ele busca o excesso de peso, ora busca o excesso de ausência de peso (vazio) nas formas e relações sociais, cuja fugacidade, às vezes, inquieta e desaba no niilismo capaz de levar à leveza desejada por Calvino e por aqueles sensíveis aos códigos subjacentes ao discurso aparente. “As imagens de leveza que busco não devem, em contato com a realidade presente e futura, dissolver-se como sonho”, diz o pensador ainda considerando: “ há uma leveza do pensamento, assim como existe, como todos sabem, uma leveza da frivolidade; ou melhor, a leveza do pensamento pode fazer a frivolidade parecer pesada e opaca.” Aqui, contrariamente ao indivíduo que se “descarrega” visando se libertar dum peso opressivo, atitude política e ativa, nos deparamos com o homem vazio que busca a efetivação na multiplicidade do objeto ou da imagem que se desfaz e não na objetivação por meio da retirada crítica de elementos que já não provocam vontade nem pensamento.

A bolsa gigante com flores também gigantes simbolizaria o excesso de signos e a ocupação frenética dos espaços, comportamento possivelmente disseminado no vazio de uma cultura pouco sedimentada em padrões educacionais, comportamentais e de consumo enraizados em valores de ordem menos volátil, voltados mais para o autodesenvolvimento do que para as necessidades de consumo industrial que têm na aquisição dos objetos um símbolo de afirmação e poder?

Alguns críticos consideram kitsch a necessidade de visualização para qualquer instante ou evento, que perpassa não mais uma classe social, a qual se referiu cheio de ódio o jornalista Luiz Carlos Prates, em comentário na televisão, após feriado no qual morreram 150 pessoas no trânsito, culpando uma parcela da população pelas mortes e qualificando-a de “miseráveis”, “desgraçados” e que “nunca leram um livro” e por isso, incapazes de possuir um carro, mas se globaliza e se afirma de acordo com o padrão sócio-econômico de cada um. Pois não seria kitsch a foto de Elizabeth Taylor, tomada, cada milímetro, por diamantes? E as feiras e bienais de livros com milhares de títulos de autoajuda e volumes que tentam vender pelo colorido, pelos escândalos de celebridades e biografias questionáveis? E as feiras literárias, com presença de celebridades, salões e bienais de artes visuais com exposição de trabalhos e performances bizarras? Livrarias invadidas em finais de semana por visitantes barulhentos levados até lá por necessidade de diversão e fuga do tédio, não seria também kitsch? E a família real da Inglaterra, afundada em dívidas e escândalos, ser resgatada pela mídia que divulga e repete com estardalhaço o casamento do príncipe Willians e, atualmente, Julian Assange com as fofocas do Wikileaks etc., etc.?

DIVISÃO TECNOLÓGICA

A falta de comedimento massificado na forma, no gosto e no gesto da cultura de consumo dá a impressão de que perdemos o senso estético e metafísico do real; que caímos no vazio da banalidade. O excesso de imagens, com a aquisição de câmeras digitais, celulares e acesso facilitado à Internet, ou seja, com o poder de compra acessível, somos tentados a acreditar que todos usufruem dos mesmos elementos, espaços, gosto, conhecimento e informação. Nada mais enganoso quando descobrimos o que cabe a cada um na hora de fazer a partilha no mundo da tecnologia e da informação.

Aparentemente, e isso representa poder, há uma hegemonia, uma ditadura de produtos e tecnologias, que deixa grande dúvida acerca do que compramos e usamos. O vestido que a celebridade exibiu na festa do Oscar pode ser encontrado no outro dia, “igualzinho”, na feira popular ou na casa da costureira da periferia; a cama Box, hoje todo mundo tem uma cama box, é vendida tanto na loja chique quanto na mais ordinária; a bolsa que a madame comprou em Paris pode ser adquirida por um décimo do valor no camelô da esquina. A profusão de artigos, lojas, promoções, cartões de crédito, empréstimo consignado, universidades particulares, planos de saúde, viagens aéreas, Shopping Center em série etc., etc., induz à ideia da harmonia dos contrários, de felicidade, de satisfação, de ausência de classes sociais, pois todos não estão comendo, vestindo, frequentando os mesmos espaços e assistindo as mesmas coisas?

ELITE DA FORMA

Lourdes, colega de trabalho, voltou de férias da Europa, viagem dividida em quinze meses. Mostrou-me um aparelhinho de última geração comprado numa loja em Londres. Ao contrário da dona da bolsa de couro gigante com flores gigantes, ela nada ostenta em excesso. É professora pública, tipo classe média baixa. O aparelhinho é um e-book. Pedi para ver alguns livros que havia baixado. Todos de Paulo Coelho e algumas biografias de celebridades do mundo dos espíritos e da autoajuda. Compreendi então o sentido da bolsa gigante. Era o mesmo sentido dado àquele minúsculo aparelho eletrônico: ambos significavam a posse da “leveza da pluma”.
Aqueles dois símbolos contemporâneos, a bolsa gigante de couro com suas flores gigantes e o minúsculo e-book, representavam tão somente velhas criações travestidas de novo que se acredita pós alguma coisa que se acha vanguarda. As duas situações faziam parte da propalada democracia dos bens sociais, da informação, do conhecimento, das artes e da imagem. No entanto, havia nesse meio, escondida, elitizada e exclusiva de uns poucos, uma terceira forma de percepção, de criação, de uso e assimilação.

Aqui, como em todos os tempos, apesar do esforço da militância socialista na defesa da igualdade entre os homens, devemos lembrar da hierarquia, da exclusão, da seleção, do filtro no mundo da informação, do conhecimento e das artes. A terceira forma é aquela que tem conhecimento do que é mito e do que é real. Uma minoria que conhece o substrato do poder e por isso usa critérios a respeito de como usar os meios de informação, sabe diferenciar conhecimento de informação, autenticidade de mistificação. Enxerga além das inovações tecnológicas, as quais são realmente neutras, não uma revolução humana, uma nova cultura, mas fórmulas surradas, preconceituosas e secularmente usadas para dominar e submeter.

É uma elite, no sentido social do termo, quem decodifica os signos, quem compreende a superficialidade do jogo planejado e executado em nome da maioria. Basta ver o que a Internet divulga em dezenas, centenas de sites. Basta ler os jornais diários, ver televisão e uma grande parcela dos blogs para descobrir que o veículo é uma rede maravilhosa na aproximação real e instantânea com o distante, contudo, a mensagem ainda continua refém da mesma roupagem viciosa e medíocre. Um exemplo desse simulacro com aparência de verdade é a onda de boatos e patrulhamentos sobre uma variedade de assuntos que, se houvesse realmente cultura da informação, os responsáveis pelos meios já teriam minimizado seus efeitos negativos. Mas o que se vê ainda são páginas de sangue e perversões migrando do jornal impresso e da tela da TV para o clic digital. Isto é, mudamos de veículo, entretanto, a mensagem continua a mesma para aqueles não mais carentes financeiramente, mas carentes de simbologia cognitiva.

Concluindo, entre a vulgarização da imagem, da forma e da palavra, há uma elite com acesso ao conhecimento e à tecnologia da informação, portanto, possuidora de uma percepção capaz de separar o joio do trigo. Isso é um sinal de que a publicidade, como sempre, ideológica em cima da democratização do conhecimento e da informação começa a ser, mais uma vez, desmistificada. Quando a histeria da homogeneização de costumes, da globalização de valores e culturas parece assumir uma verdade, o pequeno número, como sempre, reaparece e lembra, mais uma vez, que o mundo continua desigual e os homens diferentes.

Ana Barros
Natal, 19 de dezembro 2010.