quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Um pretérito perfeito


Acabou... Quem já não experimentou a sensação de liberdade, de finalmente... ao dizer esta simples palavra? Quantas vezes dizemos acabou! e que sonoridade terrível contém esse pretérito perfeito ao estancarmos suas sílabas com espaços miúdos, nervosos, inflexíveis. Entretanto, a paixão arde apenas para satisfazer este instante que todos nós sabemos, nunca deixa de ser surpresa.

A-ca-bou! é diferente de acabou... O primeiro é dilacerante, passional, morte. Dói dizer, fere quem ouve. Mas é uma necessidade de tudo aquilo que se inicia.  Pois não representamos o mesmo ato em cenários diferentes dezenas, centenas de vezes? É necessário! Nossa condição instintiva e móvel exige a repetição daquilo que nos inquieta (bem ou mal), até a consumação, seja pelo esgotamento natural do sentimento, seja pela quebra brusca e violenta da ação. Mesmo que nos interstícios de nossos atos abusemos do imperativo acabou pensando anular o sentimento causado pela experiência, não adianta, pois só o tempo dará cabo das ramificações da ilusão.
Os amantes, somente os amantes, conhecem esta sutileza dos sentidos. Nunca se cansam de repetir acabou! para logo em seguida recomeçar tudo de novo como se fosse a primeira vez.
Há sem dúvida os senhores de si que quando dizem acabou! acabou mesmo! São de comportamento inflexível, duros, tirânicos. Chegam ao paroxismo da virilidade, orgulham-se de ser imunes à vulnerabilidade de paixões. Prudentes, desfazem-se com rapidez e sem grandes traumas dos incômodos da sedução que, para os apaixonados, são a própria existência.
São esses práticos de espírito sempre equilibrado e para quem a dúvida não conta na escalada do tempo. Têm solução para tudo que ameace a sua segurança. E se acabou, para eles não há ressurreição, Fênix. Para estes fortes, a experiência passou por longe não chegando sequer a causar um arranhão capaz de fazê-los esquecer por um segundo as convicções nem sempre sensatas.
Mas para aquele cuja vontade varia de acordo com o termômetro interno da necessidade, a verdade só chega depois de múltiplas viagens pelo território nebuloso da incerteza até um dia, cansado da batalha, esgotado da experiência, mas já endurecido pela repetição do ato que se tornou pensamento e não mais vontade, dizer, sem rancor e cheio de uma calma indiferença, acabou...

 

Ana Barros

Natal, 01/07/00

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Estranho

Estou hoje só nesta praia desconhecida
Estou hoje só e longe de casa
Dessa casa que não é nada além
De um vagar em terras conhecidas
Que carrego estranhamente
Com pés vagabundos para quem
Um terreno movediço é
Descansar do tédio que vem quando
Nada mais temos a dizer
O mendigo imundo avança sobre
O meu prato de comida:
É espírito
De novo a disputa entre o real
E o meu vergonhoso asseio
O mar – indiferente – quebra
Mais uma vez

Praia de Tambaú - João Pessoa

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Carimbo

É hábito Outra vez passo na Avenida onde dormem homens de ontem
Procuro pelos fatos que fizeram história no interior das velhas casas
e pergunto erguendo os olhos na direção das janelas cobertas de musgos
aonde foram repousar os pensamentos deitados em parapeitos tão nobres,
hoje ruínas envergonhadas entre ferros, vidro, concreto
e a burocracia demente Mas os homens despertos passam esquecidos
entre ferros, vidro, concreto e a burocracia demente, correm
na Avenida acordada, fogem dos casarões, dos fantasmas e da lentidão
que virou pó Há frenesi na Avenida,há pressa em mim que atravesso
sem ver o sinal e entro na Repartição e escrevo o mesmo despacho que
vai ser lido e carimbado por K

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Andarilho

No cemitério que cavei
Deserto: vermes, fantasmas, terra estéril
E se teus olhos nos meus andassem
Entulho não era achado
Mas saltimbancos
Arlequins