domingo, 22 de agosto de 2010

Medusa

Observava seu rosto quando me detive na imagem
tantos anos a mesma e só agora completamente dada.
Confirmava que o tempo expõe nossos vícios
à contemplação que suspeitou algo escondido,
criando lodo no fundo até um dia irromper na superfície
sem mais cuidados nem pudor. Você não me surpreendeu...
Desde o primeiro momento sabia que nos veríamos de frente para o espelho.
Você com o semblante alterado, a voz raivosa, a pele
marcada pelo cinismo cruel dos velhos míopes.
Eu a esconder o lado ruim que agoniza no subsolo e morre antes do gesto.
Pensei no encontro que teríamos na casa de R
e não senti vontade de ir nem de ver de novo a imagem
gasta que hoje sei por que nunca enxerguei de frente.
Talvez receasse encontrar a verdade
revelando-se aos poucos a uma percepção esquiva
sempre a desviar do foco quando a nudez é completa.
Mas a sua nudez era tão visível quanto a minha coberta.

sábado, 21 de agosto de 2010

Minimalismo

Aprendi a bordar com as aranhas
No labirinto minhas mãos tecem com Aracne
E teu corpo é o meu corpo, teu suor meu sangue
O verbo salta dos teus sonhos. Silêncio
Escrevo – nada

domingo, 8 de agosto de 2010

O olhar enviesado

Íamos em direção à Rua. Falávamos de nossas vidas. Você sofria não de você, mas de mundo. Vi seus olhos levemente molhados e parei no meio do caminho para beijá-los. Você estava triste pela humanidade e feliz porque eu compreendia o seu devotamento. Amei-o ainda mais e tive vontade, se o físico deixasse, de carregá-lo nos braços como quem carrega um troféu. Contentei-me, contudo, em apertar-lhe as mãos longas e magras como a dizer “você é o cara!” De mãos dadas e a sua cabeça doendo de mundo, a minha não pensava senão fotografar nuances de sua nobreza. Diminui o passo para aproveitar as impressões que a tagarelice intelectual dava início. Atravessamos a esquina que separa a Avenida do Beco, onde alguns jovens fumavam crak. Procurei seus olhos na certeza de encontrar a doçura que minutos atrás tanto amei quando você sofria de humanidade. E o que vi foi um olhar enviesado de quem não queria encontrar no caminho a Humanidade. Soltou minhas mãos, apressou o passo, voltou e puxou-me enfim pelo braço e, sem dissimular o repentino ar de enfado do rosto disse retirando o celular do bolso e digitando cento e noventa: “Vamos sair daqui!” Meu amado não tinha mais o olhar úmido nem quebrado, esperava ansioso a viatura da polícia.